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A Cruz herética: cruzar a fronteira do medo do vazio (angústia) e confiar nas mãos que acolhem (fé).

  • Marcos Nicolini
  • Apr 3, 2024
  • 6 min read

Não sei se foi Erst ou Mark Block quem disse que algo singular no cristianismo é que dele surgem seus próprios hereges. Nem sei se de fato são estas as suas palavras. Li em algum lugar algo próximo a isto (por volta do ano de 2003/04, creio que de alguma leitura de Jean Baudrillard) e achei interessante. Alguns questionam se o cristianismo porta esta singularidade, isto é, de ser a religião da qual brotam hereges. De minha parte entendo que o cristianismo é herético e este partido luta contra a uma ortodoxia espúria e alienígena, que o quer colonizar. 


Para darmos continuidade a esta perspectiva herética do cristianismo, lembro que em outro lugar li que herege vem do grego airetikós cuja tradução seria o de um partido ou grupo que se destaca por suas crenças e opiniões. Heresia seria uma escolha e decisão particular que se destacaria da maioria. Mais tarde o cristianismo tomou esta palavra e lhe ressignificou a partir da ideia de ortodoxia, ou seja, o herege é aquele cuja crença difere da crença ortodoxa produzida e defendida pela Instituição Eclesiástica.

 

Mas há algo interessante que podemos destacar sobre a heresia, é que parte dela se torna ortodoxia, quer pela via direta (é adaptada e incorporada à ortodoxia), quer pela via indireta, quando exige da ortodoxia combatê-la e assim produzir, ampliar e formalizar a própria ortodoxia. Assim, coloniza-se a heresia que se torna parte da ortodoxia.

 

Os seguidores de Jesus Cristo foram chamados de hereges quando se diz que eles (aquelas pessoas do caminho, os seguidores do Nazareno) eram do partido dos judeus (algo que incomodava os judeus, pois os que posteriormente seriam chamados de cristãos eram de outro partido e não exatamente judeus). A palavra “partido” em grego é airetikós, hereges. O cristianismo é uma heresia, um corpo estanho que surge entre os judeus, se diferencia e se desprende deles: um escândalo.

 

Quando Jesus, o Cristo diz “ouvistes o que foi dito aos antigos... eu porém vos digo...”, ele oferece um movimento de deslocamento da ortodoxia defendida pelos senhores da lei e abre caminho para um escolha e opção diferente daquela estabelecida. Não é exatamente ai que ele se torna um herege, mas quando inicia a dizer “Eu Sou”.

 

Quando Paulo, o apóstolo, escreve que “o meu evangelho é este...”, também propõe um deslocamento. Mais do que isto, quando no livro de Atos dos Apóstolos Paulo diverge de Tiago e diz “não à Lei” como meio de salvação e propõe um evangelho fundado apenas no amor, ele oferece uma opção à ortodoxia judaico-cristã preconizada por Tiago, portanto, reforça a tese herética.

 

Poderíamos citar outras heresias, aquelas das quais discordamos aqui e alí, mas que permitiu o desenvolvimento da ortodoxia, quer ao dizer “isto é interessante”, quer ao dizer “isto não!”. Poderíamos falar de Ario, Marcião, Pelágio, etc., mas não é o caso aqui. O que importa é que a ortodoxia define o credo e os limites interpretativos, excluindo tudo e todos que ousam passar pelas portas que deveriam estar cerradas e caminhar por caminhos inusitados proibidos aos protegidos pelas crenças e valores vigentes. Todos aqueles que ousam transpor limites.

 

Uma tipologia significativa deste movimento, desta dinâmica, podemos tomar em Abraão, o hebreu. Alguns estudiosos dizem que a palavra “hebreu” advém de outra, “habiru” ou “apiru”, cujo significado possível é: aquele que cruza rios, isto é, que ultrapassa fronteiras, que caminha do lugar de segurança para outro lugar, o nômade, o transgressor das convenções. O Habiru/Apiru é o nômade, aquele que vive à margem das sociedades estabelecidas, que constantemente está a se mover e que coloca em risco a estabilidade das cidades por meio de uma forma de vida não de acordo com a maioria. Aqui entra a figura de Abraão (sei que a Bíblia diz que neste tempo ele se chamava Abrão, mas o chamarei sempre como o chamo) e seu ouvir de YHWH: “sai da casa de seus pais e vai a uma terra que eu lhe mostrarei.”

 

Poderíamos pensar e dizer muito sobre esta pequena passagem (passagem!), mas atenhamos para o fato que ele opta, decide pelo risco de abandonar a segurança e adentrar no obscuro mundo das trevas dos sentidos e caminhar por uma palavra inaudível e uma certeza sem fundamento outro que não a Emunah: que é a confiança naquele que num tempo futuro trará à existência as coisas que não são, e que Paulo traduziu para o grego Pistis, cujo sentido é dar crédito, é fundar a conduta na confiança, decidir na credibilidade, optar por confiar.

 

Em larga medida Abraão foi um herege e se chamar hebreu é o epíteto desta heresia, a heresia de ser Habiru/Apiru, nômade, periférico, marginal, passageiro, peregrino, forasteiro, aquele que não se adapta à média. YHWH fala com hebreus, aqueles que ousam sair dos muros da ortodoxia, caminhar para além dos limites do instituído e ousar em espaços do não sabido e, assim, desestabilizar o que fundou ordem em ritos e crenças sagradas. Abraão move-se desde o interior do ortodoxo e caminha pelas vias do experimental, da confiança infinita.

 

Façamos uma pausa. Para que toda sorte de desassossego não me sobrevenha, eu que me arrisco a seguir uma intuição cujo advento não me é preciso, embora precioso, devo nuançar minhas proposições acima. O hebreísmo herético a que me lanço o faço como experiência, isto é, estender-me ao liame mais externo da fronteira, naquele ponto que ouso pisar no vazio e deparar-me com as trevas, mas que mantém uma ligação com a confiança. Caminhar sobre as águas turvas de mãos dadas com o Mestre sem que haja esgotamento da aura, da incomensurabilidade entre Tu e eu, por mais próximos que suponho estar de Ti, ainda assim é Tua mão que me vem ao alcance e não me deixa submergir no nada. Experimentar ir até o limite mais exterior do sensível conhecido até o confiável do sim. Diria que é um hebreísmo comedido, de viés acovardado. É experiência, isto é, ex-per-entia: ir até o limite mais externo possível do ente, ali onde se enamora da loucura e do escândalo. Aqui haveria algo de místico neste movimento hebreu e herético: caminhar sem visão como que de olhos fechados para além da segurança das referências materiais e racionais a fim de confiar naquele que diz “vem” para a desreferenciação do chamado. Transcendemos os limites da razão e nos deixamos seduzir pela confiança esperançosa.

 

Como diria o autor da epístola aos Hebreus, carta aos habirus, aos que cruzam fronteiras, aos ousados experienciadores de abismos e trevas: ir e nunca chegar, estar em um espaço-tempo procurando o lugar de destino inalcançável, que se achega a nós. Talvez seja este o verdadeiro destinatário deste escrito. Não os descendentes materiais de Abraão, mas os hebreus que são habirus que cruzam fronteiras e ousam andar por fé, os seja, no absurdo do dizer sim ao incomensurável, da experiência de abandono das confianças na ortodoxia e ousar balbuciar um sim vacilante ao que convida a um caminhar nos limites exteriores das fronteiras. A ortodoxia se desmancha quando se encontra com a loucura do Emanuel.

 

Este adendo à heresia como hebreidade, isto é, como experiência do transcender o limite mais exterior do reconhecível, do cognoscível e racional e deixar-se conduzir até o incomunicável da certeza, mas que mantém o estar no mundo, sinaliza um caminho escandaloso. Se é escandaloso dizer daquele que está Além-do-Nome, o que é sem nome e que confere nome como movimento de misericórdia, isto é, dizer dEle que é fomentador de hebreidade, de heresias, de marginalidade. Se assim, neste momento já não há mais diálogo entre você, que não suporta este escândalo, então cabe o convite a deixar-me na solidão mística do anacoreta do século XXI, ou, conceder-me a amistosa fala ouvida por você, de quem salta no escuro de mãos dadas com o que impede o vazio da crítica.

 

O hebreu, o nômade marginal cuja experiência é a de quem ouve o “vem”, arrisca-se neste movimento obscuro da confiança irrestrita e, por esta via coloca em questão as certezas estabelecidas quer pela materialidade, quer pela ritualidade religiosa (idem) das certezas da ortodoxia das formas estéticas. O hebreu toma o caminho do hebreu, sem, contudo, andar os mesmos caminhos já trilhados por seu precedente. Imita sem reproduzir.

 

O caminho do hebreu, do habiru/apiru é, de um lado, o sair de quem sabe o sentido sem conhecer o destino: o sentido da experiência sem o destino do encontrar com o ideal na temporalidade da existencial. De outro lado não é se lançar no vazio do desentido da crítica proliferante e desfundamentadora cujo destino é a nadificação radical no encontro angustiante de dana: a coragem da autenticidade aniilista. O sentido do hebreu é o encontro com o nada, sua transcendência pela confiança esperançosa e uma autenticidade amorosa.


A Cruz, então é o encontro daquele que ousa dizer “Eli Eli Lamá Sabactani” (Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?) num encontro com as trevas absolutas que recobrem a experiência com o que está além-do-Nome, do conhecimento, do Verbo, mas de deixa conduzir pelas mãos que o guiam até dizer em Tuas mãos me entrego, entregando-se, assim, a silêncio amoroso. Da razão ao nada, do ultrapassar as trevas solitariamente deixar-se entregar-se à sedução do amor eterno que resguarda a autenticidade e abre o amado a ser plenamente. A heresia, o hebreu se move por sedução e entrega-se a ser plenamente a partir do encontro que transcende as trevas absolutas do niilismo.

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