A Metafísica de Nietzsche: Niilismo Místico Esotérico.
- Marcos Nicolini
- Feb 25, 2023
- 6 min read
Se eu não tivesse comido alguns quilos de sal com pimenta, creio que não teria fôlego para este pequeno livro (apenas 125 páginas): Horror metafísico de Leszek Kolakowski, pela Papirus, 1990. Um grande livro com algumas aproximações que o tornam um pouco impreciso aqui e ali, assim como dá alguns passos ligeiros, com rapidez de lebre, ultrapassando cânions por saltos e não por pontes. Mas um livro para degustar as palavras lentamente e pensar nas possibilidades e impossibilidades de pensar.

Como sempre me apaixono não pela totalidade do texto (lembro-me sempre do poeta que diz: e ama, como amava o pescador, que se encanta mais com a rede do que com o mar...), mas pelo pouco que compreendo e pelo muito que me afeta, neste caso pelo niilismo místico de Neitzsche, mutatis mutandis, da pós-modernidade progressista.
Desde Platão que o Único, a unidade e a singularidade é um problema. O mundo das ideias ultima na Ideia do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro, os quais são múltiplos mas ultimam no Eidos, forma, ideia. Para os neoplatônicos a questão de conceituar este Eschaton (último) esbarra na aporia e na circularidade, pois a linguagem não logra êxito em capturar o que é indefinível, intransponível, exatamente porque está além da linguagem. Cada vez que se ousa dizer do além-do-último de intransponível, inapreensível, já o colocamos na linguagem.
Haveremos de lembrar que para os neoplatônicos haveria, como nos apresenta Arthur Lovejoy em seu “A Grande Cadeia do Ser”, uma hierarquia de seres cujos elos são contínuos, plenos e imutáveis desde o Ser até a Matéria-Prima (não-Ser). Kolakowski vai além em nos falar que além da cadeia finita, contínua, plena e imutável, esta circula, pois que o movimento circular é a imagem da eternidade no tempo (uma boa leitura foi proposta por Rémi Brague, “O tempo em Platão e Aristóteles, Loyola). Este movimento circular provoca (se assim podemos dizer) o retornando inexorável, necessário a si mesma, indefinidamente. O que Kolakowski questionaria em Lovejoy é a imagem linear de uma cadeia que encontra início e fim, como uma reta euclidiana finita formada por portos sequenciados; enquanto na imagem de Kolakowski a figura ultrapassa esta geometria monodimensional, não encontrando início ou fim, isto é, caso ousássemos falar de início e fim estes huper-ultimariam, quer dizer, encontrariam Nada. O Ser e o não-Ser transcendem em Nada.
Nada, por sua vez, é huperagnoia (gnose é conhecimento, agnose e ignorância, desconhecimento, e huper é super, além de, o que poderíamos dizer que huperagnoia seria uma superignorância, ainda mais, um além da ignorância, um ultrapassamento da possibilidade de conhecimento). Se assim for, então, ousamos dizer que a Cadeia do Ser Trágica (os autores citados não utilizam o conceito de tragédia para este encadeamento movediço, mas me atrevo a dizer) tem seu arché (originariedade e fundamento) neste elemento huperagnóstico: Nada (Kolakowski está tratando do huperagnose em do Nada em Damásio, o último dos neoplatônicos e estamos ‘acompanhando-o’ desde a página 49 até a 55).
Mas ainda não chegamos plenamente à questão do niilismo místico, embora tenhamos encetado a questão do Ultimum, do Eschaton e do Nihil. Aqui poderia retornar a uma proposição do autor (em páginas anteriores) que nos apresenta este Ultimum como dois Ultima (pg.36): o primeiro é a questão da proveniência, da origem do existente, do mundo, do cosmos, da Grande Cadeia do Ser Trágica; o segundo toca na questão do fundamento do existente. Os dois sentidos de “arché” no grego, de princípio como origem e como fundamento (parece que o autor se esqueceu de um terceiro Ultimum, a seber, do telos, ou o caráter providencial do existente - presente em Aristóteles e, por certo, nos neoplatônicos e nos estoicos– o que estaria articulado com a ideia trágica do Ser e da existência). Podemos, assim, jogar um pouco e pensar na questão do Ser, mais precisamente na transcendência do Ser e na questão do não-Ser, ou na transcendência do não-Ser (übersein e überseinicht). Ultrapassar o Eschaton e nos desencontrarmos nos descaminhos do indizível, no huperagnose, nas aporias do Nihil.
A ultrapassagem da ultimação do Ser (Übersein) e do não-Ser (Überseinicht) é um movimento a Nada, antes, dois, se assim poderíamos dizer, Nihil. A origem e fundamento do Ser é o Vazio, e também o seu Telos, o sentido do existente. A origem e fundamento do Ser é Nada; o sentido do Ser é Nada. Este me parece ser o conceito de niilismo que precisamos nos ater. E em meio a isto perceber que a originalidade do niilismo não é moderna, mas já estaria presente em Platão e nos neoplatônicos (Plotino e Damásio, por exemplo), assim como na mística cristã (esta tese é apresentada por Conor Cunningham em “Genealogy of Nihilism” e não apenas por Kolakowski, como eu estou a lê-lo). O ultrapassamento do Eschaton, isto é, o niilismo como aporia da Cadeia do Ser Trágica já se encontra articulado no pensamento de Damásio, herdeiro de Plotino, Proclo e Platão, como defende Kolakowski.
Precisamos lembrar, no entanto, de um conceito que está presente na Grande Cadeia do Ser Trágica, portanto, no neoplatonismo e também no gnosticismo, a saber: a presença do Übersein em cada elo (ainda que de maneira degradada à medida que marca a distância de cada ser ao Ser) assim como do Überseinicht, isto é, da carência de Ser no ser, até o não-Ser. O humano, então, partilha do Ser e do não-Ser e tem em si a ânsia, o desejo de Ser e de ultrapassá-lo. A filosofia é este movimento ao Übersein. É um amor a um saber tal que se identifique com o além do Ser, portanto, com o Nada. A mística clássica, o esoterismo das escolas de sabedoria tinham em vista este amor pelo ultrapassamento do contingente em vista do Além-do-Ser, Nada.
O mito do Niilismo, digamos, ativo, é uma mística que quer crer que o contingente, a materialidade deve ser ultrapassada por uma sabedoria esotérica, à qual deve-se ter amor absoluto, amor fati. O Niilismo, portanto, não é amor à vida, mas amor ao Nada. Desde Sócrates que este amor absoluto pela sabedoria, como condição ultrapassamento do contingente, isto é, da vida enquanto o existente voltado para o eterno, passa por uma crítica aos valores estabelecidos (arché e doxa) e a proliferação de sentidos pelo questionamento da verdade de cada um deles. O que importa aqui não é o telos, o lugar último, pois este é Nada. O que importa é o método, o questionamento de todo e qualquer valor sem que qualquer valor outro seja posto no lugar, a isto chamou-se de maiêutica, a qual Nietzsche nunca abandonou. Não há como e porque colocar outro valor, uma vez que este já é pensado como contingente, como Seinicht ultrapassável e ultrapassado. A vida tem, assim, o sentido de Nada, pura indiferença e frieza.
O que importa é a crença esotérica e mística que o humano tem em si os recursos e competências para não apenas criticar os valores supremos, como também que pode existir em Nada, isto é, como desvalorização metodológica de todo valor. Como ódio à vida como instância de revelação de valor. A crença num humano que se ultrapasse de sua humanidade e se identificasse como deus, isto é, ultra-mundano. A divinização do humano: Übermesnch. Uma potência humana (sua razão) que tendo ultrapassado sua própria potência se identifique com Nada, desfazendo-se do peso do contingente.
Este é, lembrando o texto de Kolakowski, o conceito mais aproximado que os neoplatônicos oferecem a Übersein, ao Vazio, a Nada: não carece de nada, nada pensa, nada realiza. O Absoluto ao ultrapassar o Ser Nada é, não tem realidade, não tem subjetividade. Quando Nietzsche critica e declara a morte de Deus, de fato está dizendo: “Deus é um lugar vazio, temos horror ao vazio, sejamos o Vazio.” Deus morreu! O humano é deus! A vida é Nada.
Nietzsche se apropria de um misticismo clássico que foi ultrapassado pelo cristianismo e o floreia com uma nova retórica e o faz parecer autêntico. Retomando como eterno retorno do mesmo o que antes era circularidade trágica de um tempo que sempre volta a si e da Grande cadeia do Ser; e como amor fati o ultrapassamento que apoiado na potência da Razão Crítica (filosofia) tornaria o humano na divindade Niilista. Nada de novo, pois esta modernidade que no mínimo 15 séculos.
Não nos deixando alongar por outros caminhos que aqui se abrem, mas lembramos que esta é a crítica que faz Heidegger à metafísica de Nietzsche: ele ainda acredita em deus, acreditando na vontade de potência da razão até seu pleno exercício, seu ato em Nada. Heidegger vai além de Nietzsche reduzindo a Razão à seus limites: o ser como linguagem e a linguagem como contingência, restando ao humano a autenticidade. Mas isto são outros descaminhos. Fiquemos aqui, na religião mística de Nietzsche e seu Zaratrusta: a utopia obscurantista-esotérica do Übermensch.
Comments