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A solução Moderna ao tríplice desenraizamento do homem

  • Marcos Nicolini
  • Jun 28, 2020
  • 7 min read

O problema consiste no seguinte: como determinar uma política tal que sem a qual não é possível pensar a vida, a própria existência humana?

Aristóteles (em “A Política”) vai dizer que o homem é um animal político (bios politikós), e apenas as bestas e os deuses prescindem da ordem política.


A Grécia como acontecimento que deve muito pouco ao logos, à razão, e deve muito mais à narrativa que define a política como tragédia.


Toda ficção produzida ali e a partir dali visa impedir qualquer possibilidade de pensar a existência do humano fora da política, ou, em termos mais teológicos, produz um discurso que diz que “fora da política não há salvação”.


Roma vai dar continuidade a este exercício de “engenharia social” (avant la lettre, pois este é um conceito que vai ser desenvolvido apenas 2.000 anos depois). Cícero dirá (“Da República”) que o indivíduo deve tudo a Roma e que ela dispõe dele quando e como entender, e se Roma permitir que este indivíduo busque seus interesses, então, e somente então, ele poderá fazê-lo.


A Idade Média é um período singular neste movimento, pois apesar de parecer que descontinua esta tragédia política, de fato apenas organiza o que estava sendo produzido sem as narrativas adequadas. Se há uma linguagem que arregimenta eficazmente o ânimo da manada humana é o discurso religioso. Na Idade Média (aqui permito-me certa elasticidade conceitual que me leve abarcar como Idade Média o período que vai do século IV ao XV) se produz o arcabouço que legitima o poder político e que está em vigência até hoje, como, por exemplo, a metafísica do Estado e Governo, público e privado, soberania, etc. (conforme dirá Giorgio Agamben em “O Reino e a Glória”).


A Modernidade se assenta na religião e o Iluminismo perfaz um trabalho de secularização complementar, que nada mais faz do que capturar o discurso religioso, produzido na Idade Média, rompe as amarras transcendentes e diz: haja luz.


Não sejamos tão rápidos em dizer que nada há de novo sob o Sol, há. A Modernidade toma o indivíduo, produzido pela teologia cristã, e o isola como hoje um cientista isolaria um objeto a fim de estabelecer um olhar dominante.


Paul Tillich (teólogo protestante) vai dizer (em “A coragem de Ser”) que no cristianismo o indivíduo se vê em apuros, pois está só diante de Deus e diante dele tem que dar conta desta relação, diríamos, impossível. O cristianismo produz este indivíduo (como diz Paulo, o apóstolo, “o justo viverá pela fé”, não havendo lugar onde possa se esconder, nem na comunidade, nem nos ritos, nem em nada).


Não obstante esta angústia de estar diante de Deus, este indivíduo vivia em meio a uma comunidade de trabalho, a uma comunidade social e uma comunidade simbólica. Em outros termos, sua subsistência advinha da terra na qual trabalhava, sua moral, seus costumes, suas relações sociais estavam dadas no imediato de sua comunidade e partilhavam de um conjunto de crenças e valores espirituais, não apenas com a comunidade imediata, como com seus antepassados. Sua vida material, social e espiritual era dada nesta suficiência imediata.


A Modernidade toma o indivíduo, este dispositivo cristão por excelência, mas precisa desenraiza-lo, romper os vínculos de liberdade que ele traz consigo. A Modernidade vai traçar um projeto de destruição dos vínculos de suficiência do indivíduo. Retirar dele a subsistência material, a subsistência social e a subsistência espiritual a fim de criar uma dependência apenas e tão somente com um poder político.


O trabalho de Hobbes trata de atomizar o indivíduo e produzir uma dependência deste com o Leviatã. O trabalho de Hobbes visa legitimar a “servidão voluntária” (como dirá mais tarde La Boétie) a partir do isolamento radical do indivíduo diante de um poder organizado que o submete e impede que ele resista e viva fora dele. Hobbes jamais percebe o indivíduo como um participante de uma rede de relacionamentos sociais, o vê apenas como um ente em guerra constante contra todos. Este indivíduo belicoso se convence de alienar sua liberdade (em estado de natureza) e passa a viver num Estado que o permite apenas cumprir as leis do soberano.


Por sua vez o trabalho iniciado por Locke e aprimorado por Adan Smith, toma este indivíduo atomizado e busca suprimir, impedi-lo de obter suficiência a partir de seu próprio trabalho, cuja finalidade é a obtenção de recursos para a manutenção de sua vida biológica. O indivíduo passa a ser pensado como um átomo integrado numa cadeia de valor, cujo trabalho nesta cadeia apenas agrega valor ao elo anterior e repassa ao elo subsequente para que este agregue ainda mais valor. O dinheiro, como dispositivo moderno, tem um papel preponderante nesta tragédia. Aqui não se trata apenas de uma questão marxista de alienação da relação do trabalhador com seu trabalho, mas, vai além, e se torna uma questão que permanece presente na produção coletiva do trabalho: o indivíduo não produz algo que seja suficiente para sua subsistência, mas participa de uma rede de agregação de valor na qual ele é parte ínfima e substituível. Seu sustento não advém do imediato de seu trabalho, mas é midiatizado em uma rede de dependências intransponível. A revolução industrial na Inglaterra nos oferece um exemplo frutífero: a pauperização dos camponeses, a expulsão deles do campo e sua ida à cidade e a venda de sua força de trabalho nas indústrias têxteis.


Rousseau toma a terceira via. Para este pensador quem não aceitar ser livre deve ser eliminado. A liberdade para este grande genebrino é se submeter à Vontade Geral. O trabalho deste visa o desenraizamento da produção simbólica e a submissão desta ao poder político. Em Rousseau a religião deve ser suprimida (pois ela não faz parte da Vontade Geral) e deve ser substituída por uma religião civil. Todas as crenças e valores religiosos que os indivíduos professam devem ser abolidas e seus ânimos devem se voltar para os valores políticos. A revolução francesa nos oferece um exemplo ímpar da violência nefasta desta teoria política, com a morte de milhares de pessoas que não queriam ser livres.


A Modernidade e o Iluminismo, então, produziram muitos textos e deram legítima a muita baioneta a fim de que aquele indivíduo que obtinha recursos da terra, em conjunto com sua comunidade, com a qual partilhava valores espirituais, fosse triplamente desenraizado. Rompeu-se o vínculo do indivíduo com sua subsistência, como sua comunidade e com seus valores espirituais.


Este indivíduo passou a vender sua força de trabalho numa rede de agregação de valor, na qual ele mesmo se converte em um bem negociável, transmutado em cifras monetárias. Não há o trabalhador, mas uma peça, uma engrenagem cuja eficiência, capacidade de agregar valor, é quantificada como valor-moeda. Este indivíduo atomizado torna-se uma parte da rede de agregação de valor a medida que é eficiente em agregar valor, cujo valor é parte desta agregação. A relação do indivíduo, agora atomizado e tornado dispositivo de agregação de valor, com a subsistência é midiatizado por seu valor na rede de agregação. O que ele produz não é o que ele precisa para subsistir.


Voltemos um pouco ao caso do dinheiro. Segundo David Graeber, o sentido do dinheiro, sua finalidade não é a quantificação dos objetos e a possibilidade de trocas mercantis amplas, mas o endividamento. Retornando à revolução industrial, lembramos que a pauperização dos camponeses esteve imbricada com o endividamento destes e a necessidade de venda de suas terras para pagar dívidas. Segundo Graeber, o mesmo mecanismo foi aplicado em Madagascar. Segundo o autor, a França invadiu a ilha, impôs uma moeda, o que tornou todos os moradores endividados, coisa inédita. O endividamento modifica a relação do indivíduo com o trabalho, pois de então deixa de trabalhar para obter recursos necessários à sua subsistência e passa a trabalhar para o outro, o credor.


A estes três grandes modelos soma-se o modelo de Estado de Hegel, sobre o qual apenas nos ateremos ao fato de que, seguindo este autor, devemos concluir (com Alexandre Kojeve, em “Introdução ao pensamento de Hegel”) que o Estado é o fim do movimento da história. Antes de Fukuyama, a história já conheceu seu fim em Hegel e Kojeve, no Estado Moderno: fora do Estado, nada.


No entanto ainda estamos neste dilema aparente. De um lado Hobbes, Rousseau e Hegel (e por que não dizer, Marx, que longe de sua ficção de uma sociedade sem Estado, preconizou uma Ditadura da Vanguarda) e de outro Locke e Smith. De um lado Estados fortes e totalitários, de outro o Mercado forte e totalitário. De um lado ou a supressão da propriedade privada dos bem de produção, ou a presença marcada do Estado nos investimentos, de outro um Estado mínimo (ou até mesmo inexistente: ficção anarcocapitalista).


Esta falsa querela já se mostra coisa do passado. O novo modelo já foi gestado, está implantado e se expande, sob a alcunha de China. O modelo que promete suplantar o dilema Estado-Mercado já está operante, engendrado a partir do ajuste entre desenraizamento da subsistência, desenraizamento comunitário e desenraizamento espiritual. A China transformou o Estado em uma Holding e o Mercado num braço operacional do Partido Comunista. O PC-Chinês desenraizou triplamente seus indivíduos, agora atomizados e solitários, sem recursos para fazer frente ao poder organizado, enquanto incorpora no Partido as técnicas de gestão empresarial e no Mercado a presença de um poder que detém o direito de uso legítimo (segundo os intelectuais) da violência.


A presença deste Estado-Mercado cada vez se faz mais notória e grave não apenas nas instâncias públicas, como também, e sobretudo, na instância privada e íntima. Aquele indivíduo medieval que estava diante de um Deus que conhecia não apenas seus gestos e palavras, como também seus pensamentos, sentimentos, intensões, desejos, mas que partilhava da vida numa comunidade com a qual trabalhava e se comprometia, foi substituído por um indivíduo atomizado, desenraizado, objetivado, traspassado por dispositivos de controle e sujeição. O indivíduo que emerge no século XXI tornou-se, de um lado, um objeto de estudos e controle, e de outro, uma peça no equipamento do Estado-Mercado.


O projeto que começou com Platão, passou por Agostinho, Aquino, em Francis Bacon encontrou sua insígnia (Saber é poder) e avançou até aqui, realizou, por fim a tragédia do homem como bode expiatório: morto sacramentalmente aos deuses do poder.

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