Afinidades eletivas: marxismo, fascismo e darwinismo social
- Marcos Nicolini
- Dec 5, 2020
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Updated: Dec 6, 2020
Notas Preliminares sobre o “A origem das espécies” de Charles Darwin
“[...] se a variação for vantajosa ao animal – a forma modificada deve suplantar bem depressa a forma original, em virtude da sobrevivência do mais apto. [...] toda variedade de formação nova seria normalmente local no princípio, o que parece, aliás, ser norma para as variedades em estado natural de tal modo que os indivíduos modificados de maneira semelhante devem formar em breve um pequeno grupo e tender a reproduzir-se facilmente. Se a nova variedade obtiver êxito, na luta pela sobrevivência, propaga-se lentamente em torno de algum sítio central; luta incessante com os indivíduos que não tenham sofrido alteração alguma, ampliando sem cessar o círculo de sua atividade e acabando por dominá-los.” (pg. 77)

Como nota inicial, devo dizer que Darwin passou a se tornar uma leitura obrigatória pela insistência com que Domênico Losurdo, em seu livro Hegel e a liberdade dos modernos, no capítulo final, quer pregar no liberalismo, e apenas nele, a pecha de darwinismo social. Esta leitura de Losurdo me levou a adquirir outro livro dele, Luta de classes, assim como pretendo ler outros: um dia conto o que achei de tais. Assim, tomei da minha estante presencial o livro de Darwin a que faço referência acima, editado pela Folha de São Paulo em 2010. Desta leitura pretendo me ater aos conceitos que poderíamos chamar de vetoriais. Conceitos de linhagem filosófica, os quais transcendendo o campo de pesquisa do naturalismo, exercem forte influência no campo de forças das relações sociais, políticas, econômicas e da religião.
Basicamente o que me levou à Darwin é sua possível diferença, relativa, ao progressismo revolucionário, num tempo em que a revolução se tornou sinônimo de genocídio cultural, ou, culturocídio. Lembramos que em nome da Revolução francesa se assassinou os representantes do antigo regime – clero, nobreza e afins – e em nome das revoluções marxistas do século XX se assassinou os representantes da burguesia, pelo simples fato de que representam uma ordem que, segundo os revolucionários, haveria de ser extinguida pela nova ordem. A revolução se tornou um nome impróprio para a imposição de formas de vida utópicas embrenhadas num mundo que adota a ideia de direitos humanos, assim, Darwin, suponho, volta à cena.
Desconfio, e para isto vou precisar de muita leitura num futuro próximo, que Gramsci que, suponho eu, desejou mimeticamente (aqui tomo referência em René Girard e sua teoria da violência mimética: desejar o desejo do outro até o ponto de buscar eliminar o outro a fim de monopolizar o desejado) realizar pelo marxismo o que Mussolini realizou pelo fascismo. Desta maneira, o gramscismo deve ser pensado como um fascismo de esquerda, mas que se afastaria de suas táticas violentas em primeiro instante, incorporando as estratégias de hegemonização do campo cultural.
Por esta via, então, devo desconfiar que o marxismo de Gramsci seja um fascismo cultural de violência postergada. Assim sendo, as pessoas vestidas com cor preta, vandalizando a cidade e assassinando seus inimigos, devem esperar até que o momento oportuno ocorra. Kairós, ou momento oportuno que Badiou, Agamben e Zizek chamam de acontecimento. O acontecimento da violência não deve preceder a mudança, mas selá-la, dar a ela o significado de uma novidade que eclode vulcanicamente. O acontecimento final, escatológico por essência, terá que aguardar o tempo em que os vermes possam ser eliminados, a justiça divina, sem que a moral cristã remanescente, inscrita nos direitos humanos, seja vilipendiada, antes, esta há de ser profanada. O conceito de profanação devo a Giorgio Agamben, em que profanar é desprezar, esquecer o uso original e lhe conferir outro uso qualquer, tal qual quando uma criança toma um crucifixo e brinca de avião sem se dar conta do significado daquele dispositivo. Profanar é transcender a secularização.
Até lá devemos nos ater à teoria da hegemonia, e é neste ponto que as coisas podem ficar muito interessantes. A estratégia é fascista, com táticas outras, digamos, de um hegemonismo progressista darwiniano. Reduzir a distância de coisas aparentemente tão dispares, até o limite de confundi-las, exige de nós um exercício de aproximação por escolha de elementos aproximáveis, eleição de pontos de afinidade. Aproximar até que se identifique. Este método aparece citado por Darwin, no referido livro, como um método científico da química de seu tempo (pg. 70). Posteriormente foi canonizado pelas ciências sociais a partir dos escritos de Max Weber. Neste ponto passo a fazer uso do conceito de afinidade eletiva, tão caro a Max Weber e muito bem explicado por Michel Löwy em A jaula de aço.
Estou a imaginar que o gramscismo deva ser pensado como resultante da afinidade eletiva entre marxismo, fascismo e darwinismo. Minha imaginação é menos decorrente de leituras prévias de Gramsci e mais causada pela prática ideológica daqueles que pregam a tomada de poder pela via cultural. Práticas estas tão comuns em nosso século XXI. Contudo, isto apenas justifica minhas desconfianças quanto às leituras de fatos cotidianos e não de livros deste autor.
Seguindo a minha imaginação, entendo que do marxismo Gramsci toma as utopias de progresso e de igualdade. O progressismo (a crença metafísica no progresso humano), sabemos, é a secularização de certa escatologia cristã, como nos propõe Giacomo Marramao, em seu livro Poder e secularização. Também podemos ver propostas similares em Karl Lowith em seu livro Sentido da história, assim como em diversos livros de Eric Voegelin, sobre gnosticismo e política. Isto é, a utopia da salvação no tempo futuro, saeculum, consequência e finalidade da ação exclusiva do humano no tempo, na História. Mas não qualquer história, antes aquela que sintetiza a racionalidade dialética com a temporalidade. Para os progressistas sempre estamos diante da possibilidade de migrarmos do menos para o mais, da barbárie à civilização, do homem arcaico ao Prometeus, da carne ao espírito, da massa primitiva a deus. E isto apenas seguindo certa racionalidade operante na realidade: materialismo. O progresso exige muita fé.
Por sua vez a igualdade é decorrente de certa ontologia, portanto, essencialismo, a qual reduz todas as diferenças reais entre indivíduos em infinitésimos diante do poder soberano, infinito. O que redunda numa igualdade humana ontológica produzida (techné), transformando, ou exigindo que o significante “povo” se homogeneíze numa massa informe, ontologicamente indistinguível, que se passou a chamar de igualdade. A crença no poder soberano advém da ideia de Deus presente em certo cristianismo, cuja metafísica traz como essência do poder soberano a igualdade deste a si mesmo, sua unicidade e a intemporalidade. Em outros termos, Deus como Soberano é uma crença que é tributária à arquitetura cósmica de Aristóteles (afinidades eletivas), cuja organicidade se devia ao Motor Imóvel: aquele que a tudo move sem ser movido por nada ou ninguém. É o poder enquanto poder absoluto e radical, diante do qual tudo é mínimo.
Assim, não haveria o “povo” fora da sociedade de massa, a qual é fundamental ao fascismo e aos totalitarismos, tendo como exemplo inigualável o marxismo real presente no início do século XX. Mas, de fato, tal signo (“povo”) oculta o significado real da ação de uma elite desejosa (Girard) de poder, soberano: absoluto, único e atemporal. E como sendo desejo de poder, visa a eliminação de qualquer outro agente que possa ter qualquer tipo de poder que coloque o seu único poder em questão. O “povo”, quer a isto se queira significar a totalidade homogênea, massa, dos nascidos em uma nação (fascismo), quer a isto se queira significar a totalidade dos que vendam sua força de trabalho (classe trabalhadora no marxismo), de fato tem o real significado, o slogam que recama a ação em prol de um poder soberano, que, como tal, faz mover tudo ao seu redor e para si, sem sofrer mudanças: o poder soberano muda tudo sempre, contudo nunca altera a si mesmo. Tal ação resultante do desejo de poder não é, no entanto, profanatória, isto é, niilista, mas é atéia, secularista, pois o povo é a tradução do que antes era cristandade e a política é a tradução de teologia política.
Em suma, o marxismo é um tipo de pensamento que tem um certo projeto de poder que exige de um lado a fé no movimento da histórico, que chamamos de progresso, assim como exige a liquefação do indivíduo numa totalidade que perfaz o real racionalizado. O marxismo faz romper as múltiplas e criativas relações que o indivíduo mantém com as partes, outros indivíduos, grupos e instituições, assim como as culturas e crenças, tornando-o dependente apenas de um ser absoluto e radical, sem fraternidade: apenas dependência do indivíduo ao todo.
Do fascismo, o grasmcismo, segundo a minha imaginação, toma a estratégia e o projeto de tomada de poder a partir da luta pela produção e distribuição cultural. Há um profundo esforço, neste século XXI, que visa desatrelar o fascismo da luta por hegemonia cultural, criação do fascismo. Neste tempo de pós-verdade, cria do fascismo e do leninismo, os anti-fascistas redescrevem os acontecimentos passados, dando-lhes novos e criativos sentidos. Submergem todos os discursos na pós-verdade, enquanto negam o traço característico do fascismo presente em si: manipulação da verdade e dos fatos, visando produzir um real embebecido de uma racionalidade propícia ao poder que se quer soberano.
Abrindo um longo parêntesis, podemos seguir de perto o texto de Michael Mann, Fascistas, e tomar alguns elementos dos fascismos e reconhecer nele a ação que visa a hegemonia cultural: 1º, o fascismo é parte essencial da modernidade, os fascistas estão no próprio cerne da modernidade” (pg. 11); 2º, o fascismo se funda na ideia de poder soberano e Estado-nação, cabendo “ao povo governar, mas esse povo era considerado uno e indivisível, podendo assim excluir...inimigos políticos” (pg.12); 3º, o fascismo tem como ideologia falar de maneira simples ao povo e convence-lo de que tem a solução para os problemas mais complexos e reais, assim como “o fascismo foi um movimento de ideias elevadas, que se mostrou capaz de convencer boa parte da geração de jovens (especialmente nas camadas mais educadas) de que seria capaz de promover uma ordem social mais harmoniosa” (pg.13); 4º, os fascistas eram organizados, com liderança forte, cuja relações no interior do movimento eram em clima de camaradagem, mas com comprometimento que mantinham os indivíduos em certa “jaula social” (pg. 14); 5º,davam vazão ao fato de que indivíduos humanos são propensos, em caso de requisitarem tais tendências, a produzir o mal radical (pg. 14-15); 6º, os fascistas eram nacionalistas, mas se identificarmos o nacionalismo com o classismo, podemos dizer que os fascistas realizavam todos os males aos grupos aos quais se opunham, os estrangeiros ou os de outras classes sociais, sabendo que “existem duas grandes correntes de pensamento sobre o fascismo. Uma ‘escola nacionalista’ mais idealista [...] uma ‘escola classista’ materialista”. (pg.15-16). Ainda mais, “para alcançar seus objetivos, os movimentos sociais manuseiam uma mistura de controle dos sistemas essenciais de significados (ideológico), controle dos meios de produção e troca (econômico), controle da violência física organizada (militar) e controle das instituições centralizadas e territoriais de regulação (político) [...] Na tentativa de tomar o poder, os líderes fascistas também tentavam neutralizar as elites econômicas, militares, políticas e ideológicas (especialmente a Igreja).” (pg. 16). Por fim, “esses homens também faziam o elogio da ‘resistência’, do ‘movimento’, da ‘ação coletiva’, das ‘massas’ e da dialética do ‘progresso’ por intermédio da ‘luta’, da ‘força’ e da ‘violência’ [...] Coletivistas, eles desprezavam o ‘individualismo amoral’ do liberalismo do livre mercado e a ‘democracia burguesa’, que negligenciavam os interesses das ‘comunidades vivas’ [...] Recorria mais ao darwinismo social [...] para formar um Volk [...] Recorrendo a Rousseau e a Durkheim, os teóricos afirmavam que as instituições competitivas como os mercados, os partidos, as eleições ou as classes não eram capazes de gerar moralidade [...] elas deveriam ser integradas num Estado corporativo que então cuidaria de representar os interesses da nação como um todo.” (pg.18)
Basicamente o fascismo, como resultante de uma modernidade massificada, surge de um ambiente de crise econômica, de valores morais e políticos, cujo discurso passava por ter uma solução para a crise e cuja tática se fundava no controle da política, da economia, assim como da produção ideológica, oferecendo significado aos jovens que não encontravam no sistema contemporâneo o significado, baseado na ação coletiva, no progresso, na luta e na eliminação total dos inimigos. Neste sentido, o hegemonismo cultural parece ter fortes afinidades com o fascismo.
Dito isto, podemos retomar a Charles Darwin e ler o estrato acima. O que sobressai neste pequeno texto é uma estratégia que, por afinidade eletiva, pode ser redescrita num discurso sócio-político, segundo as seguintes em etapas: 1ª, de um grupo razoavelmente homogêneo surge uma variação, decorrente de adaptação às novas condições externas: o novo surgindo das mudanças externas, respondendo às necessidades adaptativas negadas pelo grupo original; 2º, este pequeno grupo variante obtém sucesso em sobreviver em uma determinada área e em meio a um grupo maior; 3º, o que era um grupo pequeno expande-se e inicia um processo de rivalidade e de luta por espaço; 4º, o grupo variante se torna vencedor na luta e elimina seus adversários. Em outros termos, o novo, mais adaptado às novas condições, portanto, é uma resposta progressiva aos novos tempos, cresce e elimina os grupos retrógrados e obsoletos. Dois elementos presentes no marxismo estarão presentes também aqui: uma dimensão secular, temporal da mudança e a busca por igualdade que ocorre após a presença da desigualdade, a qual é eliminada pelo grupo vencedor. Contudo está excluído aqui, do marxismo, a dialética e a revolução, a mudança acontecimental. Do fascismo se pode buscar a estratégia da clandestinidade inicial, do recurso à violência em momento apropriado, da territorialidade.
Portanto, não nos parece que estes três sistemas de pensamento, a saber, o marxismo, o fascismo e o darwinismo, se excluam necessariamente, mas que podem se articular em torno de afinidades eletivas. Tal articulação que podemos chamar pelo nome de projeto de engenharia social pela via da hegemonia cultural, longe de ser um fruto da imaginação, está presente hoje nas escolas e universidades, na política, e no Estado em geral. Não obstante ainda haja espaços de resistência a esta homogeneização (a qual chamariam de racionalização) do real, com por exemplo a economia e lugares de produção de ideologia, como certos setores de igrejas.
Importante notar, contudo, que assim como Rousseau, Hegel, Nietzsche e outros tanto serviram para os propósitos da chamada esquerda, também serviram para a chamada direita. O darwinismo social não apenas responde às necessidades teóricas e praxiológica da direita, como também da esquerda. Outro fato que podemos colocar aqui, nestas notas preliminares é que a tríade Estado-Economia-Sociedade, que formam um trilema (Dani Rodrik, The Gloabalization Paradox), numa impossibilidade de harmonizar os três, exigindo a subsunção deste aos dois faltantes, pode estar em vias de resolução ao se fundir o Político e o Econômico numa única instância de poder, relegando o social a um resto sem solução. Mas isto é outro assunto. Será?
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