Algumas considerações sobre a árvore, mutatis mutandis, sobre o humano…
- Marcos Nicolini
- Sep 4, 2022
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Consideração 1: Ferdinand de Sussurre em seu Curso de Linguística Geral nos fala que a linguagem tem como objetivo a comunicação, não tratando do mundo, isto é, da realidade em si, das coisas materiais. Segundo o Curso proposto por ele, quando dizemos “havia uma árvore no meio do jardim” não se trata de uma descrição realista que pode ser verificável, ou que espera por uma verificação, mas uma comunicação cujos símbolos linguísticos significam algo na comunicação. Não se trata de uma relação entre haver algo na realidade tangível que chamamos de árvore e dizer que há uma árvore, mas de comunicar algo a alguém.

Aquele ente, aquela coisa no mundo seria um signo, uma figura, algo que afeta nossa visão e que arbitrariamente chamamos de árvore (significante), cujo significado é um tipo de objeto que tem uma forma, cores, etc que reconhecemos como aquilo que damos o nome de árvore. O significante (a palavra) árvore não tem nenhuma correlação essencial com o ente do qual falamos, e que ao falarmos lhe conferimos significado para a comunicação entre falantes de uma mesma língua.Para nós é árvore, para outros é tree, também há os que a chamam de devero, e os que a chamam de shú. Entre o signo e o significante não haveria qualquer ligação essencial, tudo se dá para a comunicação.
O significado que um significante poderá ter é espaço para debate. Hora se diz que o significado é dado como que se apontando para um dicionário, onde A=A (mesmo quando se diz que, p.ex., casa significa lugar de moradia, etc); hora o significado será dado no contexto imediato, como p.ex, “minha casa é azul”, “o botão é maior que a casa desta blusa”, ou ainda, “Maria se casa com José mas ama Joaquim”. Uma terceira possibilidade é que o significado seja dado pelo texto, pelo discurso, pela narrativa, como p.ex., “Lula é comunista”, “Bolsonaro é Fascista”. O que importa é que o significado do significante não se dá pelo mundo real, mas é dado arbitrariamente na linguagem e na fala.
Desprezando todas as mediações que os filósofos exigiriam que fizéssemos, podemos dizer que migramos de uma crença em que a verdade era dada pela relação entre descrição e a realidade verificável no mundo, para uma situação onde o que se quer é a coerência interna, a justificação do discurso, da fala. Fizemos este salto para salientar a distância entre o realismo epistemológico e uma epistemologia de viés estruturalista, a qual se apresenta de maneira variada em outras formas de descrever, narrar, produzir mundo.
Consideração 2: Hugh Lacey em seu Valores e Atividades Científicas 2 me permitiu entender a estreita relação entre Ciência Básica e a descrição de corpos materiais que nos lembra as proposições apresentadas na Linguística Geral de Saussure. Antes, porém, de falarmos de Lacey vamos lembrar da passagem das formas de conhecimento propostas na pré-modernidade para as da modernidade, também por saltos.
A pré-modernidade é marcada por um tipo de conhecimento, por uma epistemologia aristotélica, a saber, por descrições qualitativas com pretensão de dizer sobre a essência dos entes, das coisas. P.ex, a Palavra movimento que para nós diz respeito a uma mudança de localização espacial num dado tempo (quando digo que me movimentei, quero dizer que sai do lugar onde estou e fui para outro lugar, ou que fiz um percurso no espaço e retornei ao ponto de partida), para Aristóteles movimentar diz respeito tanto à mudança espacial, quanto a envelhecer, reproduzir, etc., toda uma sorte de mudanças desde uma situação inicial. Os entes, as coisas se movem em vista um movimento em que o ente busca seu lugar de descanso. Hoje, ainda, o significado de movimento social traz esta referência aristotélica de mudança de um estado inicial. O importante é notar que em Aristóteles o movimento é descritivo (era jovem e envelheci, era baixo quando criança e cresci ao me tornar adulto, etc.), e que hoje quantificamos o movimento, p.ex., digo que houve um movimento social em tal sentido pois as mulheres que ganhavam x% menos que os homens, hoje ganham y% menos; ou que da população universitária z% era composto por pretos ou pardos e hoje é de w%.
Notemos que enquanto na pré-modernidade, no pensamento herdado de Aristóteles o que se fazia era descrever essências, qualidades dos entes, das coisas, em busca de encontrar o lugar próprio destas coisas no cosmos, na Cadeia do Ser, no pensamento moderno o que fazemos é quantificar aquilo que a nós aparece sem levar em conta uma hierarquia de ser e nem um movimento do ente em prol de ser o que se é (teleologia). A passagem, o movimento do pré-moderno ao moderno se faz num movimento de distanciamento ou abandono do qualitativo e uma adoção da quantificação universal.
Galileu Galilei (séculos XVI-XVII) disse que o mundo é um livro escrito em linguagem matemática. Esta passagem do qualitativo para o quantitativo não se deu revolucionariamente pela genialidade de um progenitor da modernidade, por um Descartes, por exemplo. Já nas disputas escolásticas (do século XI ao XVI) se discutiam os movimentos dos entes segundo cálculos e fórmulas; no Renascimento Maquiavel (séculos XV-XVI) já quebrara o Espelho dos Príncipes (espécie de manual de qualidades e virtudes que deveriam ter os reis para exercerem o bom governo sobre os homens) e propôs que o Príncipe racionalizasse o exercício do poder por meio de cálculo para conquista e manutenção deste; Francis Bacon (século XVI-XVII), também na Renascença, já lançará as bases para o abandono da epistemologia aristotélica em vista de uma epistemologia empirista. No século XVII Descartes busca, então, fundar a Razão nas matemáticas.
Tendo ressaltado esta passagem de um cosmos qualitativamente organizado para um universo fundado numa racionalidade quantitativa, podemos retornar a Hugh Lacey. Para este filósofo da ciência esta tem uma uma história de progresso, progresso este crescente, acumulativo, de refinamento do conhecimento e com eliminação de erros, é uma história “em que a metodologia desempenha papel central” e tal metodologia científica “é sistemática e empírica, baseada em experimentos e medições […] valendo-se dos recursos de léxicos matematicamente articulados, postulam representações dos fenômenos e de suas leis e ordens subjacente.” (Pg. 58) O autor nos permitirá dizer que esta metodologia se articula em uma estratégia materialista, isto é, empírica e quantificável, que toma os objetos do mundo como corpos abstraídos de seus desejos, intenções, concepções, etc., corpos a-históricos e descontextualizados.
Retornemos à passagem do conhecimento qualitativo ao quantitativo acrescentando o trabalho de Kant quanto propõe que não podemos conhecer a essência, o ser em si dos entes, dos objetos no mundo, mas apenas os fenômenos, aquilo que destes objetos nos aparece aos sentidos. Não se trata apenas de uma constatação metodológica, mas um decaimento do essencial para o fenomênico, uma redução dos objetos do mundo ao seu aspecto aparente, o que se mostra e não o que se é. A estratégia materialista é esta redução dos objetos ao seu aparecer desqualificado. Desqualificar o objeto é abstraí-lo de sua interroridade, de sua essência, de suas especificidades como objeto único no mundo. Este objeto desqualificado é conhecido como fenômeno e seu conhecimento se dá pela quantificação, por aquilo que dele se pode medir, catalogar, submeter à linguagem apropriada da ciência: o léxico matematicamente articulado.
A premissa materialista toma como mote a artificialidade expressa no Ceteris Paribus, isto é, tudo o que não puder ser quantificado será desconsiderado como não científico. Com esta redução ao quantificável, mensurável e que se pode expressar em linguagem matemática, reduz-se o objeto no mundo a um corpo é suas relações fenomênicas.
Consideração 3: Pelo que dissemos acima, podemos constatar que a ciência, esta que nos apresenta Hugh Lacey é uma linguagem que obedece aos mesmos argumentos de linguagem que postula Saussure: não fala dos entes do mundo, mas desempenha uma função de comunicação científica. A ciência fala a ciência. A ciência não fala do mundo, mas articula descrições de dados arranjados de tal modo que aprimorem, expandam e lapidem a capacidade de extrair dados e produzir descrições destes dados arranjados matematicamente. A ciência menos amplia a capacidade de conhecer os entes do mundo e mais reduz heuristicamente o mundo ao seu campo de linguagem.
A ciência reduz o mundo conhecível ao dispositivo de seu conhecimento: a linguagem tal que os entes sejam reduzidos às aparências, aquelas que possam ser descritas numericamente. A ciência de um lado reduz o mundo, heuristicamente, ao que pode descrever e por outro lado traz em si o viés universalista, subsumindo tudo ao seu léxico. Toda estratégia materialista, isto é, pretensamente científica, traz consigo este duplo movimento: reduzir heuristicamente e pretender-se universalizável.
Lembramos que a ciência, uma vez que traz consigo certa referência estruturalista velada, isto é, não descreve o mundo, não ecoa, não traduz as relações dos entes no mundo tais quais estas se dão, mas descreve dados quantificados de corpos descontextualizados que apresentam correlacionamentos segundo um lexico matemático. O que Hugh Lacey vai perguntar é: por que sua adoção?
Consideração 4: Primeiramente porque atende a uma demanda humana por controle. A ciência responde a está demanda de controle eficiente. Neste momento da leitura me recordei do texto de Heidegger sobre a técnica, isto é, a adoção do mundo como reserva de utilidade, como causa material para um projeto humano (lembrando mais uma vez Aristóteles). Em segundo lugar, porque se atrela as técnicas, a um fazer que é útil ao que o humano chama de bem-estar para si.
Consideração 5: Uma questão: o que dizer quando o humano deixa de ser um entes especial no mundo e decai como mais um corpo a ser controlado e tornado causa material de um projeto de ciência?
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