Cartas: fomos achados assim
- Marcos Nicolini
- Dec 8, 2016
- 25 min read
Homosexuais, verdadeiros discípulos e velhas ideias.
“Marcos. Bom dia ... Posso conversar sobre o tema atual e bíblico com você? A respeito do que o Pastor X disse em uma de suas palestras... na realidade foi uma pergunta de um internauta... E ele responde... Posso transcrever a pergunta e a resposta dele.

O rapaz se intitula homossexual e pergunta a ele se mesmo casado com outro homem pode ser discípulo de Jesus Cristo. Ele responde: para essa religião do Silas... E de outros aí não... Mas para o verdadeiro Cristo é claro que você pode ser discípulo sim, mesmo casado com outro homem... existem casamentos homossexuais mais felizes e que perduram por mais tempo que o casamentos convencionais. Não quero em hipótese alguma julgar ninguém Marcos. .. Só queria entender como isso é possível perante a Bíblia e os tempos atuais.”
Tomemos este tema para pensarmos. Porém, antes de mais nada devemos assentar o momento que vivemos. Principalmente a partir dos anos 1970 e 1980 o Mundo Ocidental está passando por um crise, que podemos chamar de crise de valores. A queda do mudo de Berlin demonstrou a ruina não apenas da ideologia marxista-stalinista, como furtou ao Ocidente uma contraparte vital de sua ideologia binária, a qual favorecia as identidades a partir do confronto nós-eles, bem-mal, verdade-mentira, etc. O Ocidente tem se debatido em torno desta orfandade e se aprofunda em crise. Neste sentido, o Ocidente tem carecido de inimigos, e a religião retoma seu protagonismo.
Por outro lado, a religião Ocidental, a saber, os cristianismos vêm de longa data agonizando, desde que viu transferir seu poder e centralidade para o pensamento secular, vindo a ocupar um lugar periférico nas sociedades ocidentais e seculares. A partir de 1970-1980 os cristianismos buscam retomar o protagonismo público e, em alguns casos, político. O esforço em reocupar o protagonismo esteve atrelado a um vínculo com as ideologias políticas beligerantes do Ocidente: o conservadorismo e o marxismo, que se autodenominou de esquerda progressista. O chamado neopentecostalismo ocupou a terceira via mais eloquente, a dos liberais, cuja tradução das regras de mercado se dá pela teologia da prosperidade. Por sua vez, a Igreja Progressista se identificou com a Teologia da Libertação e agora com a do Evangelho Integral.
A implosão da esquerda marxista-stalinista levou consigo a impossibilidade de projetos econômicos (comunismo e socialismo econômicos, ou, uma ordem econômica sem propriedade privada) e político (partido único), limitando-a ao discurso social e cultural. A agenda da esquerda progressista se tornou uma agenda moral, de regulação dos costumes. Neste sentido, a esquerda passou a adotar uma agenda pró-GLBTX, pró-aborto, pró-minorias-raciais, pró-minorias-religiosas, etc. Em suma, pró-periferias-sociais, ou melhor, pró-minorias, entendendo por minorias aqueles grupos ou indivíduos cujas demandas não são reconhecidas, enquanto são combatidas ou marginalizadas.
Os conservadores, por sua vez, buscam retornar aos ideais que julgam ter existido no passado. Olhar para o passado é sempre reconstruir ideais que de fato não existiam lá. São projeções de passado. Os conservadores adotam uma agenda antiprogressista, isto é, levantam por bandeira a heteroxesualidade, a família tradicional, o direito do feto, as hierarquias sociais, etc. Em suma, por uma homogeneidade harmônica como supõem ser o modo ideal que a tradição consagrou.
Por fim, os liberais, os neopentecostais querem prosperidade financeira e econômica. Os discursos, teológicos ou seculares, serão em prol da maximização do resultado financeiro e, quem sabe, até mesmo econômico. Se os GLBTX derem mais dízimos que os heteros, então é para eles que a Igreja se abre. São os interesses individuais traduzidos como trocas mercantis lucrativas que ditarão os discursos e fundarão as instituições. Os liberais não têm outra agenda que não seja a liberdade de trocas livres entre indivíduos.
Podemos notar que nesta crise a agenda da esquerda se aproxima da agenda social e cultural da religião. Os Progressistas e os Conservadores compartilham mais do que uma agenda, contrapõem-nas inamistosamente. Por vezes se apoiam mutuamente (como no caso das Teologias da Libertação e do Evangelho Integral) e por vezes se tornam inimigos (como no caso das Teologias Conservadoras e da Prosperidade). O embate sobre as famílias tradicionais (hetero-afetivas) e novos arranjos familiares (homo-afetivas) é um confronto entre os Progressistas e os Conservadores. O embate entre justiça distributiva e individualismo é um confronto entre Progressistas e Liberais.
Estes confrontos nos permitem perceber duas coisas: primeiro, devemos perceber que há uma crise no Ocidente, a qual nos aponta para o fim de um Mundo e a abertura para um Mundo por vir, que não sabemos qual será, se será e que se coloca como uma crise da tradição e uma abertura para o novo, pela mudança; segundo, mostra-nos como os discursos estão ainda limitados a esquemas tradicionais, pois tanto os Progressistas, quanto os Conservadores acreditam numa ordem com um único fundamento, assim, as agendas colocadas pelos antagonistas nos obrigariam a escolher o pacote todo (pró ou anti), que mantém a falácia do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, do nós e do eles.
Progressistas acreditam na verdade intransponível do Progresso, e os Conservadores acreditam na verdade da Tradição. As agendas destes dois grupos descansam sobre suas verdades inquestionáveis. O Liberal, Neopentecostal, não tem verdade a não ser aquela de uma causalidade que relaciona sacrifício-benefício (ou, nos termos religiosos, dízimo-prosperidade). Dito isto, podemos tomar a fala do pastor X, a qual nos permite pensar sobre a crise dos Ocidentes e meios de escapar a este maniqueísmo obsoleto e arcaico.
A reprodução da fala deste pastor nos permite destacar duas chaves de interpretação: a felicidade e a permanência temporal, assim como o apelo a uma Verdade: “o verdadeiro discípulo de Jesus.” São estas três questões que desejamos abordar. Primeiramente salientemos sua fala quando diz que “tem homoX mais feliz que hetero...” Devemos desconfiar da felicidade como parâmetro para validação de qualquer conduta, dentro ou fora do cristianismo. A felicidade é mais um estado relacional, do que um lugar de constância. Sabemos que estamos felizes, pois antes vivenciamos uma sensação de não-felicidade, ou de tristeza. Não há felicidade em termos absolutos, portanto, não há como fazer esta afirmação, uma vez que qualquer relacionamento, espera-se que implique em momentos de felicidade e de infelicidade. O sucesso, ou fracasso, se é que podemos chamar assim, não se mede pela felicidade.
Igualmente, haveremos de questionar o o critério da continuidade temporal, como baliza. Dizer apenas “se perdura tanto, então...”, não nos oferece qualquer chave para uma verdade sobre uma dada relação. Há coisas que perduram e produzem situações que entendemos como males, enquanto perduram. O racismo, as discriminações contra mulheres, homossexuais, etc., perduram muito e são catastróficos. Quando pensamos em perdurar no tempo, a felicidade perde o sentido, pois uma felicidade contínua é monótona e infeliz.
O cristianismo, caso estejamos falando de discipulado, ou de trilhar a via dos discípulos de Jesus, não passa pela promessa de felicidade e nem a de permanência no tempo. Paulo, escrevendo uma carta à Igreja em Filipos, diz: “sei estar bem, como estar mal, faminto e saciado, nu e vestido, alegre e triste... consigo viver qualquer situação em Cristo.” Aliás, devemos ter em conta o fato, aceito, que o tempo-espaço é a dimensão da passagem, do que não perdura. Apenas podemos pensar no antes e no depois, pois há uma diferença de arranjos que nos permitem distinguir momentos. Em arranjos indistinguíveis o tempo perde o sentido. O espaço-tempo é a dimensão do desejo e da oscilação entre frustração e prazer.
As duas vias, ainda mais, articuladas, não são uma boa saída para a questão.
Estamos, então, diante de um crise, que nada mais é do que a marca da não permanência, da inconstância de arranjos que não mais respondem as buscas e desejos. O cristianismo, por outro lado, parte de uma impossibilidade humana em lograr êxito em suas buscas. Mais do que isto, que a humanidade, os humanos, os indivíduos não se completam, não têm desejos e buscas realizáveis. Haveremos de entender que há, para o cristão, um antagonismo fundamental e intransponível, determinado pela Graça e pela humanidade.
O cristianismo parte de uma perspectiva pela qual o humano é mais do que falível, é inconsistente, incoerente, incapaz de produzir o bem por si. A humanidade é esta criatura, incompleta e que jamais se acabará na busca por completude, que há de buscar fora de si aquilo que não encontra em si. O humano é um vir-a-ser-que-nunca-será. Cada questão pelo homem (humanidade e indivíduo) posta produz uma resposta insatisfatória que o conduz a uma nova questão. Não somos uma tese que se esgota numa antítese as quais produzem uma síntese que será superada futuramente, mas, uma pseudo-tese, uma tese já superada em sua origem, que não dá conta plenamente de seus desafios e nos remete e mantém entre o passado e o futuro incompletos. O passado não é superado e o futuro não é realizado. O homem tem dificuldades de determinar seus alvos e de mover-se efetivamente para eles. O alvo, sua assertividade, objetividade e atingimento nos remete ao sentido grego da palavra, aquela que podemos traduzir por pecado: “acertar o alvo”.
O pecado é um termo importante para o cristianismo, que podemos dizer ser um termo técnico, e tem sido relacionado a ideais de conduta moral e a não identificação da ação individual com tais ideais. Tomando como exemplo o Conservadorismo, podemos dizer que neste pode haver um ideal de família (homem, mulher, filhos e filhas, formam um núcleo familiar heterossexual e monogâmico). Assim, a poligamia, o adultério, o homossexualismo, etc., são pecaminosos ao se desviarem do ideal tradicional. Contudo, dissemos acima que no cristianismo enfrentamos uma tensão entre a humanidade e a Graça, entre a impossibilidade de descrever o humano e fixar seu conceito, e aquilo que transcende o humano e que é inapreensível ao homem, que chamamos de Graça.
O cristianismo rompe com o judaísmo à medida que move da Lei e sua necessária obediência, para a Graça, que coloca a Lei em movimento. A Graça não é uma Lei mais secreta, um mistério que funda o Escriturado. A Graça é o que escapando à Lei, tenciona a Lei, movendo a Lei num outro sentido. A Lei são aos normas que regulam as relações entre os humanos, mas os humanos não se fixam nem no tempo e nem no espaço legal. A Graça reconhece a impossibilidade humana de fixar alvos e realiza-los, conquanto acolhe esta incompletude e lhe oferece um valor transcendente. A Graça é o motor que humaniza a Lei que quer se fixar. A Graça se move com a impossibilidade de dar conta das questões irrespondíveis da humanidade, enquanto a fixidez, a tentativa de fixar o humano em sua autossuficiência é o pecado humano, o erro do alvo.
O humano nem é fixo e nem autossuficiente, enquanto o pecado pode ser entendido como a fixação de ideais e a garantia de que o homem pode se identificar com tais ideais. O pecado é a desumanização do humano, que aponta para sua divinização, o querer ser tal qual Deus. O pecado não apenas é a instância da autossuficiência humana, como a autossuficiência do indivíduo, é, em outros termos, o narcisismo, o egoísmo, o desamor, a desgraça. O homem é esta busca fora de si se um ser não apreensível e não realizável. Não é a dor, o medo, ou o prazer, ou a confiança que movem o humano, mas seu desejo de satisfazer sua incompletude. O cristão entende que a humanidade pode buscar fora de si o prazer, a felicidade, o gozo (visando a satisfação de desejos egoístas e narcisistas), ou pode buscar fora de si a vida e a Graça. A humanidade pode buscar fora de si seu prazer, submetendo tudo aos seus desejos insaciáveis, ou buscar fora de si o reconhecimento e o acolhimento a si e ao outro. O cristianismo é este movimento de busca fora de si. Abandona o desejo monárquico por si e reconhece e acolhe a busca do outro consigo. A Graça é este reconhecimento e acolhimento.
A Graça é o que nos reconhece e nos acolhe. Não somos discípulos de Jesus porque nos conduzimos de maneira moral. Não somos discípulos de Jesus porque nossa conduta se identifica com um padrão superior, uma lei da perfeição. Não somos discípulos de Jesus porque nossas ações são ilibadas, perfeitas. Nossa perfeição não é moral, mas de humilde reconhecimento de termos sido acolhidos pela Graça. Somos discípulos pois fomos acolhidos pela Graça: a Graça nos basta. Como diz Paulo: maldito homem que sou que ajo de maneira perversa...bendito homem que sou que fui acolhido pela Graça.
Neste sentido, voltemos à pergunta: posso ser homo e ser discípulo? A resposta, para mim está na pergunta: posso ser X e ser discípulo? Se X puder ser substituído por uma lista infinita de possibilidade morais com as quais eu não concordo, que fogem ao ideal de perfeição que tenho diante de mim, então devemos nos perguntar “se EU posso ser discípulo”?. Voltando a Paulo: “Eu, maldito homem que produz o mal, posso me dizer discípulo daquele que entendo ser o padrão moral?”. A questão desvia-se do ideal moral, a partir da incompletude da humanidade, para a questão de poder haver um “verdadeiro discípulo”.
Deixando de lado a verdade, atenhamo-nos à questão: o que é ser discípulo? Levando em conta que o cristianismo rompe com o judaísmo exatamente no abandono da relação Lei-obediência, para um sentido da Graça, temos que abdicar de buscar no discípulo uma descrição moral idealizada. O discípulo não é aquele cujo padrão moral é elevado e as suas ações são idênticas a este padrão. Ninguém é assim. O discípulo é aquele que reconhece o acolhimento da Graça e com Graça acolhe o outro que reconhece como humano igualmente. Ser discípulo é ser gracioso.
Desta maneira a resposta não está na felicidade, na permanência e na moral, mas no encontro da Graça com o humano, encontro que se renova nas crises, quando os padrões e crenças já não dão conta das novas questões. A Graça é um mover que mantém o original. A graça é encontro de um Reino está entre vós. Como disse Jesus ao falar aos fariseus, diante dos publicanos e prostitutas: o Reino de Deus está entre aqueles (prostitutas e publicanos) e não em vós (fariseus, ícones da perfeição moral).
Certamente que nos encontramos com outros problema, como diz Paulo aos Romanos: “que diremos pois, pecaremos ainda mais para que a Graça superabunde em nós? Claro que não!” O que Paulo, possivelmente, estará nos dizendo é que o homem egoísta, narcisista, que busca a felicidade e o prazer para si de maneira permanente (e isto é o pecado, para mim), quer que a Graça some-se a este prazer, lhe sirva de serva promovendo ainda mais prazer. Tal graça para este é como um anestésico que o permite agir voltado apenas par si, sem reconhecer e acolher o outro. A Graça permanente e superabundante que garante meu pecado, a satisfação de meus desejos, ao deus que tudo pode sem prestar contas a ninguém. A Graça se torna instrumento do pecado, uma forma de produzir gozo no egoísta, um deus que se torna idêntico ao homem. Não é o pecado moral, das condutas que se chocam com o padrão, mas o pecado do egoísmo, da arrogância, da soberba, do narcisismo, de se considerar o centro do universo, o deus a ser servido. A Graça não alimenta esta prisão do indivíduo a si e seu desejo de felicidade eterna.
A Graça, que nos basta, reconhece-nos e acolhe-nos. Mas, caso neste movimento do amor de Deus, o próprio Deus entender que nossas condutas são pecaminosas (nos termos de um pecado como conduta egoísta e autossuficiência), é ele quem, pelo Espírito, nos convence do pecado, da justiça e do juízo e deve agir para a nossa. Ao reconhecermos e acolhermos este Deus em nós, então, abdicamos de nossa arrogante presunção de sermos centro do mundo e deixamo-nos mover pela Graça transformadora. A nós não cabe dizer quem deve ser o discípulo, ou, qual o discípulos que é o verdadeiro, é a Graça que o reconhece.
“Marcos entendi sua resposta.
Também concordo com você em relação a conscientização de que, para Deus, não existe níveis de pecado e consigo ver isso no caso da mulher adúltera onde Ele diz: aquele que não tiver pecado que atire a primeira pedra.
Consigo ver aqui, para além de uma pergunta que os deixou sem ação, a graça de Cristo.
No entanto o que Cristo diz em seguida é: vai e não peques mais.
A pergunta é: se no lugar da mulher adúltera fosse um homossexual ele diria: vai e não peques mais?
Marcos não estou, com isso, querendo condenar ninguém, até por que sou tão falho e pecador como qualquer outro homem e careço da misericórdia do Senhor.
Mas só coloquei a questão porque achei uma certa precipitação deste pastor em fazer tal afirmação. Olha as palavras de JESUS CRISTO sobre o tema, em Marcos 10
1 E, levantando-se dali, foi para os termos da Judéia, além do Jordão, e a multidão se reuniu em torno dele; e tornou a ensiná-los, como tinha por costume.
2 E, aproximando-se dele os fariseus, perguntaram-lhe, tentando-o: É lícito ao homem repudiar sua mulher?
3 Mas ele, respondendo, disse-lhes: Que vos mandou Moisés?
4 E eles disseram: Moisés permitiu escrever carta de divórcio e repudiar.
5 E Jesus, respondendo, disse-lhes: Pela dureza dos vossos corações vos deixou ele escrito esse mandamento;
6 Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea.
7 Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher,
8 E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne.
9 Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.
Deus fez macho e fêmea e deixaram pai e mãe e se unirão e serão uma só carne.
Pelo menos aqui eu não vejo Ele abrindo espaço para novos arranjos familiares.”
Primeiramente, entendo que Jesus é muito maior que nossa pretensão interpretativa. O máximo que conseguimos é reduzi-lo ao nosso diminuto tamanho. Com isto, haveremos de ter em consciência que perdemos muito, deixamos escapar muito, ainda que busquemos nos aproximar ao original. Isto quer dizer que não haveremos de pretender dar conta, nunca, do que ele fala, apenas interpretar a partir de alguma chave previamente escolhida, que permita abrir alguma porta de entrada.
Jesus falando aos fariseus disse: “vocês têm a chave para abrir a porta, mas não abrem e não permitem que outros entrem.” De nossa parte, haveremos de preferir abrir a porta para que qualquer um entre, deixando para o dono da casa tratar com os que nela estão, da maneira que preferir. O original passa a ser esta abertura, que podemos chamar de reconhecimento e acolhimento. Voltemos às palavras que nos excedem, as de Jesus.
Jesus, segundo o texto de Marcos 10, aparentemente estaria falando de Moisés e do divórcio. Devemos dar preferência a dizer que aparentemente toma a Lei e a possibilidade de romper um casamento como tema, mas quereria falar de outra coisa. Em outro lugar Jesus vai dizer, contudo: “ouvistes o que foi dito por Moisés? Eu porém vos digo...”. Jesus não toma a Lei em sua literalidade, antes, passa por ela a fim de apontar para algo que não está na aparência da Lei, mas no sentido original e nos possibilita ir além. Estamos diante do incompleto (o exemplo circunstancial) e do transcendente (o original).
Caso, de fato, Jesus, ao citar a Lei, fale de outra coisa, do que falaria ele? Podemos dizer, sem temer errar muito, que Jesus falaria da Lei para dizer algo que subjaz e ultrapassa a Lei. Sua intensão não é retomar e reforçar a Lei, mas fazer emergir aquilo que fundaria a Lei. Não fica na Lei, em seu texto imediato. O que é este algo que subjaz e ultrapassa? Ousamos propor como chave de leitura a Graça amorosa de Deus, a qual funda e ultrapassa o texto da Lei, desta maneira se colocaria como convite fundamental e transcendente.
No texto de Marcos 10, Jesus cita o divórcio e a unidade, mandamento e misericórdia. Podemos perceber nestes choque uma tensão entre a dureza do coração humano e a flexibilidade divina: humanidade e Graça. Podemos perceber nas palavras de Jesus as bases para aquela antropologia cristã que entende o homem como que destituído dos recursos para ser, por si, promotor do bem.
Poderíamos, ainda, questionar o “bem” por meio de proposições, como aquela de Nietzsche, quando diz que o bem e o mal são socialmente determinados. Não importa se socialmente ou metafisicamente, a questão é que há algo que uma dada sociedade dirá, “isto é o bem”, ainda que o bem desta sociedade não seja o de outra sociedade. Mas embora seja o bem que escolheu, não consegue realiza-lo, o bem lhe escapa, enquanto lhe oferece sentido. Pela perspectiva cristã, o humano não logra êxito em realizar o bem que tem objetivado. Mas, diferentemente da ideia nietzschiana de degenerescência, a antropologia cristã pensa apenas em angústia e frustração. Voltemos a Jesus.
A Lei (aquele conjunto de normas sociais ou religiosas que uma dada sociedade aceitará como reguladora das relações entre seus membros) entende a desobediência ao código como um ato individual (e mesmo de um grupo) de desvio, de incorreção, que chamamos de pecado, cujas intenções podem não ser claras. Embora a nossa sociedade contemporânea tenha eclipsado a palavra pecado, é o conceito de desvio de conduta frente a uma norma que estabelece um castigo, uma punição. A Lei expõe um conjunto de normas e regras que nos dizem o que podemos ou não fazer. Assim como nos diz as penalidades pelas ações contrárias a ela. De maneira simplificada, estamos diante da relação crime-castigo, assim como da obediência e dos ganhos. O pecado para a Lei é desobediência e o castigo está prescrito nela.
O que seria o pecado no regime da Graça? É aqui que o cristianismo se torna pernicioso para com a ordem jurídica-legal, tradicional, este que confunde justiça com Lei. Este é outro assunto, então, devemos ir direto à proposição de um conceito de pecado que não se sustente como desobediência.
O divórcio é um exemplo de um momento em que a Lei permite algo extra-legal: “por conta da dureza do vosso coração há o divórcio.” O divórcio não é legal, mas uma flexibilização da lei, por conta da misericórdia de Deus. O pecado, no sentido grego original, é “errar o alvo”, imaginando um arqueiro que lança suas flechas em vista a um determinado objetivo, objeto. Mas se passamos da Lei para a Graça, mirar na obediência à Lei já é, em si, pecado, pois estamos objetivando o alvo errado, errando o alvo da humanidade. Erramos de alvo por mirar o alvo errado. O nosso alvo é a Graça e não a obediência.
O que seria a Graça, para nós? (aqui assumimos um hipótese, ou melhor, uma fé) O reconhecimento e o acolhimento do outro, o movimento de reconhecer o diferente e acolher o outro como outro, sem ter como pretensão anular o outro visando que ele se identifique a nós. Não somos o ideal de humano, não somos o centro do universo, não somos medida de todas as coisas, nem a imagem do perfeito, portanto, não podemos exigir do outro que se torne à nossa imagem e semelhança. Não somos, ainda que pensemos em nós como totalidade, a imagem de Cristo. Cristo não pode ser reduzido à soma daqueles que dizem crer nele. Cristo transcende os seus seguidores, aqueles que o reconhecem e o acolhem. A Graça é ser reconhecido e acolhido como o outro do Cristo, e como tal reconhecer e acolher o nosso outro. Tornamo-nos imitadores de Cristo em sua Graça e não imitamos um suposto código legal e moral idealizado pela mente humana.
Tampouco a Graça é anular-me e identificar-me com o outro. O outro não é a idealidade humana para que nos anulemos e nos tornemos idêntico a ele. Podemos questionar as escolhas dos outros, sem querer impor as nossas escolhas e sem romper com esta proximidade graciosa. A Graça não é liberdade sem coações, mas também não é identidade sem diferenças. A Graça é o reconhecimento das diferenças e o acolhimento das liberdade que nos permitem a individualidade e nos colocam em comunidade. Pecamos se nos colocamos como centro do universo, ideal de humanidade a ser imposta a todos e medida de todas as coisas, exigindo obediência dos outros ao nosso código moral. Pecamos, de igual maneira, se nos deixamos diluir no código dos outros e abdicamos de nossa liberdade de escolhas.
Caso aceitemos minimamente que a Graça é reconhecimento e acolhimento, liberdade diante do outro e igual diferenciação por autenticidades legítimas, agora podemos retomar o casamento e o divórcio, a fim de buscarmos lograr algum sucesso em entender o que Jesus nos fala. Retomemos: Jesus está falando da Lei para nos dizer algo que não está dado na Lei. A Lei é ultrapassada a fim de evidenciar o sentido e fundo da Lei. A Lei haveria de ter como fundamento o Amor, e a Graça seu sentido.
O casamento nos fala de dois que são completamente diferentes. Ao dizer que Deus fez macho e fêmea, menos do que apontar para dimensão biológica e genética que nos diferencia, esta apontando para a própria diferença que nos aproxima. Não é preocupação de Jesus dizer que Deus criou um animal humano que pode ser tão somente macho ou fêmea. A preocupação não é esta, antes, parece-nos, a de apontar para singularidades e incomensurabilidades, diferenças tais que não são redutíveis uma à outra. Como se quisesse dizer: você é único e totalmente diferente do outro, contudo... Mais do que a instituição chamada casamento, que une um homem abstrato a uma mulher abstrata, o que se trata é do reconhecimento de que cada um é único e singular, que está faceado por alguém que o acolhe como diferente. O casamento é a tipologia da unidade pela Graça: que por serem livres, são diferentes, mas que por acolhimento mútuo estabelecem uma relação de unidade; a liberdade não impede a unidade e esta não extingue a liberdade. O casamento é a tipologia por meio da qual podemos entender que somos singularmente livres e opcionalmente vinculados por amor.
Um indivíduo singular e autêntico, não abdicando de sua liberdade, vincula-se em amor a outro indivíduo, que é diferente, enquanto goza a mesma liberdade individual que lhe confere singularidade e autenticidade. Com isto podemos dizer que para além do texto da Lei, a Lei nos falando de macho e fêmea nos aponta para indivíduos totalmente diferentes e que reconhecem não apenas as diferenças, como reconhecem uma carência em si que os faz buscar no outro um alargamento de si, quando o acolhe e é acolhido. A diferença macho-fêmea nos fala de incompletude e transcendência. O macho e a fêmea, prescritos na Lei, apontam, tem o sentido dos diferentes que reconhecem e acolhem-se mutuamente.
Ora, se os diferentes se colocam em posição de reconhecimento e acolhimento, de autenticidade e de comunidade, então, nos termos de nossa hipótese de fé, estamos dizendo de uma unidade que não vem “nem por força, nem por violência” (presentes na Lei: crime e castigo), “mas pelo Seu Espírito”. É a Graça amorosa de Deus que estabelece vínculos de unidade, sem Lei, sem obediência e sem modelos ideais.
O que Deus juntou, os diferentes que se reconhecem e se acolhem, ou seja, os diferentes que se unem pela Graça, não desgrace o homem, não se apartem ao deixar de acolher e, mais ainda, por pecar. O pecado é errar o alvo. O alvo errado é a Lei, é o homem como medida de todas as coisas. O pecado é tomar a si como medida da perfeição, segundo papeis ideais, segundo modelos supra-humanos, e deixar de reconhecer (de voltar seu olhar para o outro).
A questão de Mateus 10 não é o casamento heterossexual, mas a Graça como fundamento da ação moral que nos leva a reconhecer o outro como igualmente amado por Deus e, desta maneira, não toma-o como um humano de segunda categoria, um sub-humano. Antes, acolhe-o como alguém que se deixa permear por esta mesma Graça, que me acolhe nele. Parafraseando Jesus: não deixemos que nossos dogmas, teologias, códigos morais, leis separem aqueles que Deus uniu. O seguidor de Jesus, seu discípulo, não é aquele que promove casamentos heterossexuais, modos de moral aceitos pela sã doutrina, mas aquele que se move pela Graça: reconhece e acolhe o diferente igualmente, de mesma maneira que é acolhido e reconhecido.
Por fim, apenas para irmos além: não há, até onde eu sei, nenhum lugar nas Escrituras em que aparecem as palavras homossexual, homossexualidade, homossexualismo, homo-afetividade, e afins. Também não aparecem palavras como Televisão, Bombeiro, elétron, etc. É esta a questão que Jesus está apontando: em momentos de crise e fim de uma era, as palavras antigas, os conceitos, as normas, os hábitos, já não dão conta do que está surgindo. Temos que buscar no que está implodindo os fundamentos eternos, permanentes, no caso cristão o Amor e a Graça. A Lei de Moisés não faz qualquer sentido para nós (conforme Paulo escreve aos Gálatas), fazendo permanecer o Amor e a Graça. É como se o ouro impuro fosse jogado ao fogo, fazendo desprender a borra e purificando o metal, como nos fala Paulo ao escrever aos Coríntios.
Conforme o mesmo Paulo nos fala: edifiquem o que quiser, desde que se faça sobre o fundamento, que é a Graça de Cristo. Em tempos de crise em que velhos, arcaicos e obsoletos conceitos Progressistas, Conservadores e Liberais ainda dão seus últimos gemidos de ideias moribundas, a Graça, que reconhece e colhe, que liberta e comunga, que é novidade enquanto olha para trás, talvez, para alguns, ainda possa nos auxiliar a passar por estes dias infindos.
Primeiramente, entendo que Jesus é muito maior que nossa pretensão interpretativa. O máximo que conseguimos é reduzi-lo ao nosso diminuto tamanho. Com isto, haveremos de ter em consciência que perdemos muito, deixamos escapar muito, ainda que busquemos nos aproximar ao essencial. Isto quer dizer que não haveremos de pretender dar conta, nunca, do que ele fala, apenas interpretar a partir de alguma chave previamente escolhida, que permita abrir alguma porta de entrada.
Jesus falando aos fariseus disse: “vocês têm a chave para abrir a porta, mas não abrem e não permitem que outros entrem.” De nossa parte, haveremos de preferir abrir a porta para que qualquer um entre, deixando para o dono da casa tratar com os que nela estão, da maneira que preferir. A essência passa a ser esta abertura, que podemos chamar de reconhecimento e acolhimento.
Voltemos às palavras que nos excedem, as de Jesus.
Jesus, segundo o texto de Marcos 10, aparentemente estaria falando de Moisés e do
divórcio. Devemos dar referência a dizer que aparentemente toma a Lei e a possibilidade de romper um casamento como tema, mas quereria falar de outra coisa. Em outro lugar Jesus vai dizer, contudo: “ouvistes o que foi dito por Moisés? Eu porém vos digo...”. Jesus não toma a Lei em sua literalidade, antes, passa por ela a fim de apontar para algo que não está na aparência da Lei, mas no sentido original e nos possibilita ir além.
Caso, de fato, Jesus, ao citar a Lei, fale de outra coisa, do que falaria ele? Podemos dizer, sem temer errar muito, que Jesus falaria da Lei para dizer algo que subjaz e ultrapassa a Lei. Sua intensão não é retomar e reforçar a Lei, mas fazer emergir aquilo que fundaria a Lei. Não fica na Lei, em seu texto imediato. O que é este algo que subjaz e ultrapassa? Ousamos propor como chave de leitura a Graça amorosa de Deus, a qual funda e ultrapassa o texto da Lei, desta maneira se colocaria como convite fundamental e transcendente.
No texto de Marcos 10, Jesus cita o divórcio e a unidade, mandamento e misericórdia. Podemos perceber nestes choque uma tensão entre a dureza do coração humano e a flexibilidade divina. Podemos perceber nas palavras de Jesus as bases para aquela antropologia cristã que entende o homem como que destituído dos recursos para ser, por si, promotor do bem.
Poderíamos, ainda, questionar o “bem” por meio de proposições, como aquela de Nietzsche, quando diz que o bem e o mal são socialmente determinados. Não importa se socialmente ou metafisicamente, a questão é que há algo que uma dada sociedade dirá, “isto é o bem”, ainda que o bem desta sociedade não seja o outra. Mas embora seja o bem que escolheu, não consegue realiza-lo, o bem lhe escapa, enquanto lhe oferece sentido. Pela perspectiva cristã, o humano não logra êxito em realizar o bem que tem objetivado. Mas, diferentemente da ideia nietzschiana de degenerescência, a antropologia cristã pensa apenas em angústia e frustração. Voltemos a Jesus.
A Lei (aquele conjunto de normas sociais ou religiosas que uma dada sociedade aceitará como reguladora das relações entre seus membros) entende a desobediência ao código como um ato individual (e mesmo de um grupo) de desvio, de incorreção, que chamamos de pecado, cujas intenções podem não ser claras. A Lei expõe um conjunto de normas e regras que nos dizem o que podemos ou não fazer. Assim como nos diz as penalidades pelas ações contrárias a ela. De maneira simplificada, estamos diante da relação crime-castigo, assim como da obediência e dos ganhos. O pecado para a Lei é desobediência e o castigo está prescrito nela.
O que seria o pecado no regime da Graça? É aqui que o cristianismo se torna pernicioso para com a ordem jurídica-legal, tradicional, que confunde justiça com Lei. Este é outro assunto, então, devemos ir direto à proposição de um conceito de pecado que não se sustente como desobediência.
O divórcio é um exemplo de um momento em que a Lei permite algo extra-legal: “por conta da dureza do vosso coração há o divórcio.” O divórcio não é legal, mas uma flexibilização da lei, por conta da misericórdia de Deus. O pecado, no sentido grego original, é “errar o alvo”, imaginando um arqueiro que lança suas flechas em vista a um determinado objetivo, objeto. Mas se passamos da Lei para a Graça, mirar na obediência à Lei já é, em si, pecado, pois estamos objetivando o alvo errado, errando o alvo certo.
Erramos de alvo por mirar no alvo errado. O nosso alvo é a Graça e não a obediência.
O que seria a Graça, para nós? (aqui assumimos um hipótese, ou melhor, uma fé) O reconhecimento e o acolhimento do outro, o movimento de reconhecer o diferente e acolher o outro como outro, sem ter como pretensão anular o outro visando que ele se identifique a nós. Não somos o ideal de humano, não somos o centro do universo, não somos medida de todas as coisas, nem a imagem do perfeito, portanto, não podemos exigir do outro que se torne à nossa imagem e semelhança. Não somos, ainda que pensemos em nós como totalidade, a imagem de Cristo. Cristo não pode ser reduzido à soma daqueles que dizem crer nele. Cristo transcende os seus seguidores, aqueles que voltam-se para ele. A Graça é ser reconhecido e acolhido como o outro do Cristo, e como tal reconhecer e acolher o nosso outro. Tornamo-nos imitadores de Cristo em sua Graça e não em um suposto código legal e moral.
Tampouco a Graça é anular-me e identificar-me com o outro. O outro não é a idealidade humana para que nos anulemos e nos tornemos idêntico a ele. Podemos questionar as escolhas dos outros, sem querer impor as nossas escolhas e sem romper com esta proximidade graciosa. A Graça não é liberdade sem coações, mas também não é identidade sem diferenças. A Graça é o reconhecimento das diferenças e o acolhimento das liberdade que nos permitem a individualidade e nos colocam em comunidade. Pecamos se nos colocamos como centro do universo, ideal de humanidade a ser imposta a todos e medida de todas as coisas, exigindo obediência dos outros ao nosso código moral. Pecamos, de igual maneira, se nos deixamos diluir no código dos outros e abdicamos de nossa liberdade de escolhas.
Caso aceitemos minimamente que a Graça é reconhecimento e acolhimento, liberdade diante do outro e igual diferenciação por autenticidades legítimas, agora podemos retomar o casamento e o divórcio, segundo logramos algum sucesso em entender o que Jesus nos fala. Retomemos: Jesus está falando da Lei para nos dizer algo que não está dado na Lei. A Lei é ultrapassada a fim de evidenciar o sentido e fundo da Lei. A Lei haveria de ter como fundamento o Amor, e a Graça seu sentido.
O casamento nos fala de dois que são completamente diferentes. Ao dizer que Deus fez macho e fêmea, menos do que apontar para dimensão biológica e genética que nos diferencia, esta apontando para a própria diferença que nos aproxima. Não é preocupação de Jesus dizer que Deus criou um animal humano que podem ser tão somente ou macho ou fêmea. A preocupação não é esta, mas a de apontar para singularidades e incomensurabilidades, diferenças tais que não são redutíveis uma à outra. Como se quisesse dizer: você é único e totalmente diferente do outro. Mais do que na instituição chamada casamento, que une um homem abstrato a uma mulher abstrata, o que se trata é do reconhecimento de que cada um é único e singular, mas que está faceado por alguém que acolhe como diferente. O casamento é a tipologia da unidade pela Graça: que por serem livres, são diferentes, mas que por acolhimento mútuo estabelecem uma relação de unidade. O casamento é a tipologia por meio da qual podemos entender que somos singularmente livres e opcionalmente vinculados por amor.
Um Indivíduo singular e autêntico, não abdicando de sua liberdade, vincula-se em amor a
outro indivíduo, que é diferente, enquanto goza a mesma liberdade individual que lhe confere singularidade e autenticidade. Com isto quero dizer que para além do texto da Lei, a Lei nos falando de macho e fêmea nos aponta para indivíduos totalmente diferentes e que reconhecem não apenas as diferenças, como reconhecem uma carência em si que o faz encontrar no outro um alargamento de si ao acolhe-lo e ser acolhido. O macho e a fêmea, prescritos na Lei, apontam, tem o sentido dos diferentes que reconhecem e acolhem-se mutuamente.
Ora, se os diferentes se colocam em posição de reconhecimento e acolhimento, de autenticidade e de comunidade, então, nos termos de nossa hipótese de fé, estamos dizendo de uma unidade que não vem “nem por força, nem por violência” (presentes na Lei: crime e castigo), “mas pelo Seu Espírito”. É a Graça amorosa de Deus que estabelece vínculos de unidade, sem Lei, sem obediência e sem modelos ideais.
O que Deus juntou, os diferentes que se reconhecem e se acolhem, ou seja, os diferentes que se unem pela Graça, não desgrace o homem, não se apartem ao deixar de acolher e, mais ainda, por pecar. O pecado é errar o alvo. O alvo errado é a Lei, é o homem como medida de todas as coisas. O pecado é tomar a si como medida da perfeição, segundo papeis ideais, segundo modelos supra-humanos, e deixar de reconhecer (de voltar seu olhar para o outro).
A questão de Mateus 10 não é o casamento heterossexual, mas a Graça como fundamento da ação moral que nos leva a reconhecer o outro como igualmente amado por Deus e, desta maneira, não toma-lo como um humano de segunda categoria, um sub-humano, acolhendo-o como alguém que se deixa permear por esta mesma Graça, que me acolhe nele. Parafraseando Jesus: não deixemos que nossos dogmas, teologias, códigos morais, leis separem aqueles que Deus uniu. O seguidor de Jesus, seu discípulo, não é aquele que promove casamentos heterossexuais, modos de moral aceitos pela sã doutrina, mas aquele que se move pela Graça: reconhece e acolhe o diferente igualmente, de mesma maneira que é acolhido e reconhecido.
Por fim, apenas para irmos além: não há, até onde eu sei, nenhum lugar nas Escrituras em que aparecem as palavras homossexual, homossexualidade, homossexualismo, homo-afetividade, e afins. Também não aparecem palavras como Televisão, Bombeiro, elétron, etc. É esta a questão que Jesus está apontando: em momentos de crise e fim de uma era, as palavras antigas, os conceitos, as normas, os hábitos, já não dão conta do que está surgindo. Temos que buscar no que está implodindo os fundamentos eternos, permanentes, no caso o Amor e a Graça. A Lei de Moisés não faz qualquer sentido para nós (conforme Paulo escreve aos Gálatas), fazendo permanecer o Amor e a Graça. É como se o ouro impuro fosse jogado ao fogo, fazendo desprender a borra e purificando o metal, como nos fala Paulo ao escrever aos Coríntios.
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