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Cadeia Trágica de utilidade instrumental.

  • Marcos Nicolini
  • Dec 12, 2020
  • 8 min read

Uma leitura a partir da Teoria dos sistemas na prática: estrutura social e semântica (Vol. 1) de Niklas Luhmann.


Desde o início de minhas pesquisas consegui perceber que na passagem da Idade Média (vamos, precariamente, incluir a Renascença aqui) para a Moderna houve uma mudança estrutural. Deixamos de organizar a vida a partir de valores qualitativos e a fizemos funcionar quantitativamente. Isto se deu quando li de Alexandre Koyré, “do mundo fechado ao Universo infinito”.

Contudo, faltavam e faltam-me elos nesta mutação, mas Luhmann volta-se para Aristóteles e toma sua política e sua ética e as articula de maneira muito promissora. Em outros termos, o sociólogo permite que percebamos que Aristóteles articula philia, koinonia e koinonia politiké (pg. 60-61). Assim, como resposta à pergunta “como é possível a ordem social?”, diz que a solução (que não se sustentou na passagem do pré-moderno ao moderno) para tal questão em Aristóteles passa pela articulação da amizade, da comunidade e da comunidade política.


Vejamos o que se passa em Aristóteles. Primeiramente a philia, a amizade não é possível entre homens de negócios, entre ladrões, entre mulheres, crianças e escravos. A amizade apenas é possível entre aristocratas. A amizade é a identificação de anima. É neste sentido que Montaigne, retomando Aristóteles mais de dois mil anos mais tarde, dirá que amigo é uma alma em dois corpos. Em outros termos, a alma já é idêntica, apenas na amizade se faz a identificação. A philia é a identificação dos valores iguais. A isto chama de ética.


A koinonia, ou, comunidade ocorre no inicio do livro “A política” de Aristóteles. Diz o filósofo que a “polis” se dá quando um “oikós” se junta a outro “oikós”, quando uma casa se junta a outra casa. Erro seria identificar a casa como o imóvel, como o espaço físico de habitação. O “oikós” é uma unidade governada por um poder despótico, por um pater família. Podemos entender melhor dizendo que quando um senhor do “oikós” se afilia a outro senhor de outro “oikós” então se dá a polis.


Mas a polis não é a penas a afiliação aristocrática, mas se dá quando tal afiliação se dá para a constituição do bem comum. Assim, esta unidade ampliada se dá com a finalidade de um bem comum. A amizade se transforma em comunidade e a comunidade em comunidade política.


Não deixemos escapar o fato que tanto a philia, a identidade de animas, quanto o bem comum, o telos (o fim da comunidade política) são valores qualitativos. A Polis não visa o enriquecimento, o aumento quantitativo de patrimônio físico, mas visa o bem e este bem é comum, o viver bem, o qual passa pela autonomia, isto é, a submissão a uma ordem determinada pelos aristocratas, os melhores. O bem comum é imanente.


Até aqui fui com Niklas Luhmann, o qual salta da antiguidade à modernidade sem a mediação da Idade Média. Assim, me atreverei a tal exercício, data vênia.


A Idade Média surge com uma crítica contundente ao poder civil, político, feita por Santo Agostinho. O Bispo de Hipona escreve a Cidade de Deus, no qual diz que a cidade dos homens, o poder civil nunca logrará êxito em realizar a justiça, o bem comum. O bem comum na cidade dos homens é uma falácia, uma mentira, na melhor das hipóteses, uma quimera, uma narrativa obscurantista. No máximo será uma kathekon, um mal temporal e transitório que impedirá o mau, ou seja, o caos, a desordem, o reino satânico. Uma vez constatada a impossibilidade política como meio de salvação, a philia aristotélica há de ser substituída pelo ágape cristão, conquanto o homem não há mais de buscar sua identidade com o outro homem, mas com Deus. O humano é um ser decaído pelo pecado e a única identidade possível do homem com o homem é a identidade pecaminosa.


O homem cristão é alguém que estando diante de si dá-se conta de sua impotência. Não apenas sua impotência individual, assim como a impotência comum. O humano é impotente para realizar o bem comum desejado, almejado. A única identidade possível para o humano é a identidade na impotência para o Bem.


Por conta desta identidade do humano consigo mesmo como pecador que faz surgir a possibilidade de pensar o homem como sujeito. O sujeito da escolástica é alguém que é responsável por seus atos morais. Alguém que é responsabilizado por seus atos morais é alguém que faz escolhas conscientes, isto é, fundadas em seu livre arbítrio. Não há, de um lado, no cristianismo um aristocrata, alguém que é bom por natureza, como é possível pensar em Aristóteles. Assim, por outro lado, não há a possibilidade de uma tal identidade aristocrática cujo telos, finalidade, seja o bem comum imanente. O cristianismo apela, então, para o Bem Transcendente: Deus. O sujeito, o responsável moral, está diante de Deus, enquanto é um peregrino e forasteiro, ou seja, não encontra no mundo lugar de descanso, uma polis na qual pode se abrigar, devendo aguardar pela Cidade de Deus.


Além disto, o sujeito cristão, o responsável moral por seus atos, é um indivíduo (aqui chamo a atenção para Larry Siedentop e sua tese apresentada no livro, Inventing the individual: the origins of western liberalism, Penguin Books, 2014). Temos, então, um indivíduo que não tem raízes em seu lugar de nascimento, na terra. Vale a pena lembrar de Fustel de Coulanges que em seu livro “A Cidade antiga”, nos diz que aquela cidade antiga, e seu cidadão (grego e romano), tinha como fundamento, sua identidade a terra, a língua, os costumes, a lei e os antepassados. Contudo com o advento do cristianismo, o indivíduo suspira por uma terra na qual ainda não está (veja Hebreus 11), voltando-se para uma lei que não é aquela imanente e nem histórica. Um indivíduo que não encontra noutro indivíduo e nem na política uma identidade, cujo fim inexorável seja o bem comum. O Bem comum, a koinonia é transcendente, no entanto ela é qualitativa.


A Idade Média vem do desmoronar da Cidade antiga. Atenas, Esparta e Roma são ruínas abandonadas, como representação da Grande Meretriz apocalíptica que se torna cidade habitada por bestas e aves de rapinas, comedoras de carne apodrecida. Surge uma nova ordem lastreada por estamentos. Como nos fala Georges Duby, a Idade Média se organizou a partir de três estamentos, três ordens medievais: a ordem dos oradores, a ordem dos guerreiros e a ordem dos trabalhadores. Os oradores perfaziam a ordem clerical, sacerdotal, responsáveis pela normatização da vida comum a partir dos ensinamentos bíblicos e dos escritos eclesiásticos, vivendo em monastérios, igrejas e centros episcopais; os guerreiros eram os senhores feudais e seus soldados, os quais viviam em unidades fortificadas, castelos; os trabalhadores, a grande maioria da população, viviam nas extensas áreas rurais, trabalhando no campo a fim de gerar excedentes para a manutenção da vida nas igrejas, nos castelos e no campo. A visão era orgânica: os oradores eram a cabeça deste corpo, os guerreiros as mãos e os troncos, empunhando as armas que garantiriam a coesão social e os trabalhadores as pernas, suporte do corpo. Sir Ernst Barker dirá que a República de Platão encontrou sua face de realidade nesta Idade Média.


No entanto, enquanto a ordem dormia em seu formato ideal, as mudanças ocorriam. Como diz John Lenon, a vida é o que ocorre enquanto estamos planejando. Estes castelos e igrejas faziam florescer ao seu redor a complexidade. Um “oikós” se juntava a outro “oikós”, contudo, não resultante da identidade aristocrática, mas pelo comércio e artesanato. Estes pequenos centros comerciais e de produção artesanal se transformaram em burgos, cidades comerciais. Movidos pela crença cristã que rompe a relação do indivíduo com a terra, estes pequenos comerciantes desterritorializados, buscavam mercadorias nos campos distantes ou em outros burgos (de artesãos distantes) e traziam para o local. Estes homens eram bem vindos a estes burgos, embora fossem provenientes de lugares distantes. O comércio florescia nestes locais onde os bens distantes eram comercializados localmente. Um “oikós” se junta a outro não decorrente da philia, mas do comércio. A koinonia política, o burgo, não advém da amizade mas do comércio e do artesanato, das trocas mercantis.


Esta ordem emergente surge na Idade Média como ruptura da ordem antiga e é consequente das crenças cristãs, no indivíduo peregrino, que motivado por si mesmo age livremente contra uma ordem antiga, política, mas funda uma nova ordem política burguesa. O indivíduo desterritorializado, o livre arbítrio que lhe confere a potência de dizer não à ordem antiga e o comércio que altera o fundamento da comunidade, da koinonia política.


Uma vez que o sujeito cristão é um indivíduo responsável por seus atos morais e a Igreja medieval era contra a usura e o lucro, então, diante desta classe social emergente e poderosa, tal Igreja precisou produzir uma teologia que desse conta e acolhesse este burguês. Assim, segundo Jacques Le Goff, surge o purgatório: um lugar intermediário que permitia ao burguês purgar a mora de seus pecados veniais. Mais adiante surgirão o Protestantismo, o qual buscará resolver a questão do trabalho e da acumulação de bens materiais, assim como Descartes que promoverá uma transmutação no sujeito que deixará de ser um ser moral responsável diante de Deus, para vir a ser o sujeito moderno, apto a definitivamente sepultar a ordem qualitativa e fundar a ordem num sujeito aburguesado.


Quanto à emergência do sujeito burguês em Descartes (esta proposição é minha e não de Luhmann), retorno a Luhmann. Em Descarte estaremos diante de um sujeito moderno. Como tal é um indivíduo, responsável por seus atos, no entanto, é autônomo e autocentrado, portanto, funda suas decisões em uma dada racionalidade. Tal racionalidade, sabemos, é metódica e cartesiana, isto é, calculada segundo um modelo atemático: para tal vejamos o Discurso do Método e Regras para orientação do espírito. O sujeito de Descartes é um indivíduo, autocentrado que calcula suas decisões como um comerciante que usa o cálculo abstrato para trocar mercadorias em dinheiro. Temos, assim, a passagem de uma ética qualitativa para um cálculo instrumental quantitativo (obviamente).


Este sujeito vai permitir que sua racionalidade instrumental permita a abstração em universais, redundando em algo como os imperativos categóricos de Kant. Precisamos ter em mente que anteriormente a philia e o ágape tornavam a koinonia, a comunidade numa possibilidade a partir da comunhão de valores qualitativos, quer seja pela via da identidade de valores, de ânima, quer pela via do acolhimento da diferença pela crença num amor divino que acolhe a cada pecador. Com a emergência de um sujeito autocentrado, solipsista, o problema da koinonia, da comunidade ganha ares de problema. No lugar da philia e do ágape advém o cálculo e a troca mercantil, no lugar da koinonia política a divisão do trabalho e a co-dependência horizontal de uma sociedade complexa na qual cada indivíduo não é capaz de produzir a totalidade dos bens a que necessita para viver.


A sociedade não tem, então, sua coesão, sua ordem social advinda de valores éticos, mas do cálculo instrumental preciso para as trocas de bens. A ética se dissolve, na sociedade, como fundamento da ordem social, cedendo lugar à funcionalidade engendrada com a valoração quantitativa das partes que a compõe. A amizade e o amor são excluídos da ordem social, a qual advém apenas do cálculo abstrato do valor instrumental de cada unidade. Todas as unidades estão submetidas à abstração do valor quantificado. A qualidade de cada unidade funcional é transmutada pela quantidade de bens que esta unidade pode produzir e trocar numa rede de produção e troca.


O sujeito moderno se torna solidário com os demais apenas e tão somente quando mantém relações sólidas como unidade, como indivíduo que se dispõe livremente a produzir e entregar bens com valor mercantil. Trabalhar torna-se, de então, ser solidário nesta cadeia de produção de valor agregado. Nesta cadeia trágica não há amizade ou amor para além da utilidade instrumental.


Faz sentido?

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