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Charada

  • Marcos Nicolini
  • Jun 10, 2023
  • 3 min read

“A ordem produz catástrofe [...] Isso é a ordem na desordem: todos os fenômenos extremos são coerentes entre si, e o são com o conjunto. Isso significa que é inútil apelar para a racionalidade do sistema contra suas excrescências. A ilusão de abolir os fenômenos extremos é total. Estes se tornarão mais extremos à medida que nossos sistemas se tornem mais sofisticados [...] Nos sistemas transparentes, homeostáticos ou homeofluidos, já não há estratégia do Bem contra o Mal, só há a do Mal contra o Mal – a estratégia do pior.” (Jean Baudrillard, A transparência do Mal)


Por conta de um amigo meu voltei a tomar de entre meus livros um que estava “esquecido” entre outro: A transparência do Mal, de Jean Baudrillard.



Ao ler percebo como o diagnóstico pós-moderno de Baudrillard está presente em minhas leituras sobre o contemporâneo. Dentre os livros em torno da pós-modernidade que li, em um deles encontrei a seguinte fórmula de um autor, que não este: “fazer um diagnóstico do contemporâneo pela perspectiva pós-moderna não é o mesmo que ser pós-moderno” (tenho noção de quem o disse, mas não a certeza, por isso escamoteio a citação).


Interessante que Baudrillard trabalha com o conceito de transparência, enquanto eu prefiro o de pornografia. A transparência é mais amplo, mas a pornografia nos remete ao corpo, a certa materialidade que está exposta a um olhar de viés científico, objetivados, panóptico: os corpos e suas múltiplas relações entre si, relações complexas que chamamos de sociedade. Corpos se atraem e se repulsam, a partir de forças gravitacionais e magnéticas.


Mais além das relações descentradas, rizomáticas, a questão é do desnudamento radical sob a alcunha de pornografia. A pornografia é excessiva, radicalmente nua, visceralmente niilista. A pornografia não esconde nada e mostra nada além de corpos nus em relações sem sentido. Nenhum/a parceiro/a, um/a parceiro/a, n parceiros/as, parceiro/a humano ou não humano, máquina, vegetal, não importa. A pornografia mostra que não há nada a mostrar, a não ser a multiplicação de corpos nus, objetos em relações sem sentido e indiferentes, simuladas.


A pornografia é científica. Quando dizemos que um corpo é a disposição organizada de órgãos, chegaremos a dizer que tais órgãos são compostos de células, as quais são agrupamentos de moléculas, que por sua vez são formadas por átomos, compostos de nêutrons, prótons e elétrons, e que, não por fim, podemos encontrar nelas partículas ainda mais elementares e que (até onde podemos chegar a dizer) são compósitos energéticos, energia pura. Que por sua vez é imaterial. A matéria é imaterial: o ser e o nada, diria o filósofo.


A pornografia é isto, este olhar sobre os corpos que os submetem a nada, em relações sem materialidade, sem sentido, apenas corpos em relacionamentos vazios. Mais ainda, são relações fragmentadas e fragmentárias que a nada se reportam: indiferença e sem sentido.


Aqui está o paradoxo: no excesso de fragmentação, excesso de informações, excesso de representações das múltiplas relações entre corpos, chega-se a nada. Neste momento que a ciência é pornográfica: do excesso fragmentário chega-se a nada.


Por que?


Porque a ciência, assim como a pornografia, exige fé. Porque a fé (pistis em grego e fides em latim, se quisermos ainda poderemos dizer credere, crença) inicial da ciência e da pornografia é o elemento ad hoc (tirado da cartola do mágico que engana a plateia pelo desvio do olhar) que funda o dizer que nada há por fundamento, enquanto o há. Fica aqui a charada: dizer que nada há é dizer que há a fé como suporte do dizer e do nadificar.

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