Da Torre de Babel à Muralha da China, em re-torno: uma leitura a partir de Eco, Derrida e Kafka.
- Marcos Nicolini
- Apr 2, 2023
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Jacques Derrida e Umberto Eco me permitiram ter uma leitura diferente da passagem do Gênesis bíblico quando trata de Babel.

Em A busca da língua perfeita Eco me fez perceber que na cronologia do Gênesis, enquanto alguns construíam Babel fundada em uma mesma língua e num mesmo modo de falar pelos descendentes de Cam/Cão, o filho amaldiçoado por sua conduta, os filhos de Jafé se espalhavam entre as ilhas e em cada ilha se falava uma língua distinta e tinha-se um modo próprio de falar. (lembremos que Noé teve três filhos: Sem, Jafé e Cam). O que Eco salienta é que a diferença linguística, a diferença tout court, não é exatamente a maldição que caiu sobre Babel.
Por sua vez, Derrida em Torre de Babel (Bab-El, a Casa de Deus, segundo Derrida) me permitiu perceber que foi a linguagem única e um mesmo modo de falar que era mal-dito. O projeto de divinização da humanidade (melhor dizendo, dos planejadores da Torre), expresso no relato bíblico, que exigia o controle absoluto da língua e da linguagem, da estrutura e da fala, que deve ser tomado como mal-dição. Aquele que está acima da construção humana e que a transcende, vendo o projeto fadado à morte que implica na desumanização do humano pela via da insensibilidade e indiferença com o viver na e da terra, abençoou os humanos com a dispersão linguística, ao dar a cada um o sentido próprio de sua existência. A humanidade dispersa em sua pluralidade linguística, então, foi posta ao trabalho de ir ao encontro do outro, mediada apenas pelos recursos e carências de cada um e pela motivação do encontro e reconhecimento das diferenças, do encontro per si. Babel não é o relato em que Deus amaldiçoa os humanos com a dispersão, mas o momento em que a humanidade é abençoada com a riqueza de se encontrar com o que a transcende, aqui representada por Deus, reencontra a si mesma e reencontrar o outro, não apenas as humanidades, como a vida em sua multiformidade.
Mas antes de nos darmos por satisfeitos com estas desconstruções abençoadoras, voltemo-nos para Franz Kafka e seu texto Durante a construção da muralha da China (in. Narrativas do espólio, Companhia das Letras, 2002). Em meio a este pequeno escrito kafkaniano percebemos a marca da proximidade e da distância entre Babel e a Muralha da China: neste se diz que a Muralha é algo oposto à Torre, por duas questões, primeiro que aquela logrou êxito ao ser completa enquanto esta foi paralisada (pg. 78) e, em segundo, pois seus construtores perceberam que primeiro deveriam amuralhar para depois erguer uma Torre (pg.79). De fato quis dizer que em primeiro deve-se fundar a Torre, depois erguer a muralha, para, enfim, apresentar o edifício de comando concebido como Torre. O interessante é percebermos que a Muralha é um método para se chegar a uma Torre e que sem aquela, está será sempre um empreendimento que encontrará seu fracasso.
A Muralha é antecedida pela Torre que sempre é, e a Muralha é precedida pela construção dos fundamentos, ou seja (e aqui vale a pena ser textual), “a construção não foi empreendida com leviandade. Cinquenta anos antes do início” (pg. 75) as crianças foram pedagogicamente habituadas a se tronarem construtoras de muralhas, com uma rígida rotina de treinamento que implicava e, uma disciplina inflexível. A formação rígida e monolítica produzia trabalhadores que apenas pensavam na Muralha da China. Assim, e embora já adultos, ainda como crianças ansiavam em trabalhar na obra do povo, a qual se tornava invencível sob a crença da “Unidade! Unidade!” (pg. 77).
A diferença metodológica da Muralha em relação à Torre se fez preciso pois os planejadores primeiro construíram a Muralha nos construtores (os fundamentos pedagógicos) e, posteriormente, materializaram o projeto, sabendo que os humanos, em decorrência de sua essência, não suportam grilhões, a não ser que, desde a infância desconheçam outra forma de pensar. Ao serem habituados com a voz de comando apenas “só nos (os construtores) conhecemos ao soletrar as determinações do comando supremo” (pg. 80). Ao fim do tempo pedagógico nos qual se formou a hegemonia do comando no indivíduo, os grilhões já não mais são apreendidos como tais. Antes, há de se tentar “com todas as forças entender as determinações do comando, mas até um certo limite, depois pare de pensar [...] não porque isso possa prejudica-lo [...]” (pg. 80), certo de que não haverá prejuízo (não há pré-juízo). A conduta, dos que param de pensar, será como a das águas de chuva, as quais descem inexoravelmente a encosta de uma montanha: move-se assim pois é assim que há de se mover.
Se há questões e dúvidas, triviais ou não, “pergunte ao comando. Ele nos conhece. Ele, que vive às voltas com imensas preocupações, sabe de nós, conhece nossos pequenos ofícios, vê-nos todos [...], e a oração que o pai de família diz ao anoitecer no círculo dos seus lhe é agradável ou então o desagrada.” Não apenas o comando comanda o fazer público, como coloniza o privado e a intimidade: nada escapa ao comando. O comando kafkaniano nos lembra o Grande Irmão orweliano, que tudo vê e diz o que deve ser dito e pensado.
O comando não surgiu por conta nem da construção da muralha e nem por conta de seus inimigos externos, mas é dele que surgem tais coisas. O comando é a origem, a Torre ainda não visualizada, mas já edificada nos planos e na língua. Contudo, a construção da Torre requer um método e este passa por construir uma muralha dentro da qual o povo viva apenas voltado a responder, corresponder à voz de comando.
O século XX, do qual Kafka foi observador apenas de ¼ dele, foi marcado por experimentos de engenharia social, a elaboração de muralhas que tenham em vista uma torre de comando que tudo vê e tudo sabe. Ensaios de controle e comando, diríamos hoje, Panóptico (lembrando Foucault), cujos limites foram ultrapassados por uma sociedade de controle (Deleuze) e que hoje atinge o estado da arte na técnicas das tecnologias de informação e Inteligência Artificial.
Assistimos ao avanço dos métodos invasivos (por meio de algoritmos que penetram todas nossas formas de estar e pensar, de expor e relaciona) e de colonização da linguagem e a imposição de uma língua que reduza a polifonia e cacofonia, a diferença e divergência, a pluralidade de consciência, pensamento e expressão a um monolinguismo totalitário. O progressismo e o liberalismo econômico (duas faces da mesma moeda, e que não por acaso se sustentam mutuamente por meio de acordos obscuros entre o capital e a política) determinando uma mesma língua e mesmo modo de falar, assumindo o controle de nosso pensamento a partir de nossa linguagem (quem tem Kafka não precisa de Gramsci para entender o movimento de redução da riqueza humana e modelagens ideológicas e maquínicos.
A religião, palco da liberdade de crer, ter consciência e decidir a ação, se deixou colonizar pela construção dos controladores e produzem fiéis que rezam e oram como agradam aqueles que impuseram a correta ortodoxia (desculpem-me a redundância). A teologia sistemática, a teologia liberal, a teologia progressista e suas congêneres, nada mais fazem do que conduzir o crente a uma experi6encia religiosa que colabore com a Torre dentro das Muralhas.
Resta-nos nos voltarmos aos Céus e orarmos ao que antes de algo dizermos disse “Haja”, e diga, “haja dispersão” e paralise esta obra nefasta e desumanizadora. Que Deus desordene, desconstrua e desfaça esta ordem fundada na divinização daqueles que olhando para o espelho nada veem além de si mesmos: Narcisos Comandantes.
A religião dos filhos de Sem e Jafé não é aquela que suporta e sustenta o poder dos comandantes, mas é aquela que suspira pelo terremoto que tornará a Babilônia morada de morcegos, abandonada por seus construtores, que livremente se dispersam na terra em busca de um modo de falar que seja tanto livre, quanto acolhedor da diferença e da alteridade.
Satanás não é o anti-ser da confusão e do caos, mas o oposto: o mal que quer ser visto como Deus da organização, da qual ele é o cabeça que controla toda e qualquer parte.
Deus não é o ser da ordem e da estabilidade, mas o oposto: do caos criador e da ordem que se deixa refazer como novidade precária.
Que a crise que paralise este tempo de ordenamento satânico venha a paralisar tanto a Muralha, quanto a Torre com seus comandos.
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