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Uma carta a um amigo

  • Marcos Nicolini
  • Nov 27, 2016
  • 5 min read

Updated: May 28, 2020

Nós, eu...ele


Permita-me começar por onde você terminou e ver se consigo terminar por onde você começou: “e eu sou o nós e o eu.”

Até onde consegui perceber, em minhas leituras e buscas, podemos destacar três leituras mais comuns que buscam relacionar o eu e o nós, tendo em vista o ser.


Leitura 1 - Usando uma notação matemática, tal leitura seria aquela que nos diria que a soma de todas as partes é inferior ao todo. Em termos metafóricos, dizemos que caso somemos todos os componentes para a feitura de uma casa, como o ferro, o concreto, os tijolos, os fios, os tubos, etc., assim como o mobiliário, objetos pessoais e as pessoas, ainda assim não teremos lar. O lar exige algo que não é casa e seus habitantes.


Leitura 2 - É aquela que nos diria que em cada indivíduo residiria a totalidade. Tomando como exemplo os números, haveremos de notar que embora sejam diferentes entre si, todos trazem em si a mesma propriedade de ser número. Assim, pensando nos números, não haveria qualquer qualidade intrínseca a qualquer número que lhe confira privilégio sobre os demais, ainda que sejam todos diferentes. Um número qualquer não é melhor do que outro, o que os torna iguais, mas são diferentes.


Leitura 3 - A terceira é a que nos diz sobre algo sobre a individualidade, a qualidade do indivíduo. O indivíduo não como totalidade autônoma, nem como partes que estão inscritas numa totalidade, mas fragmentos cuja liberdade se dá na independência diante de quaisquer totalidades. Neste último caso cada casa é singular e cada lar é singular, não havendo como comparar e equalizar o conceito, a não ser no fato que há uma igualdade na singularidade: todas são igualmente únicas.


Voltemos à proposta “o eu sou o nós e o eu”, mas a partir da Leitura 1. Cada eu individual encontra sua identidade num nós que o transcende e não é apreensível individualmente. O todo determina a identidade dos indivíduos, esse está dado fora de “eu” e é para esse todo, transcendente a nós, que o eu se voltaria. O “eu” seria absorvido e modelado pelo todo.


Na Leitura 2 o eu deve se voltar para si mesmo, no seu interior e buscar nele sua identidade. É algo como um “conheça a ti mesmo”. A totalidade, “nós”, contém e está contida no “eu”. Perfazendo um movimento de recolhimento interior, passo a conhecer o nós e encontro minha identidade, meu ser. O “eu sou” é um “nós” reconhecido desde o interior para o exterior, diferente da Leitura 1 que o “eu sou” é reconhecido na exterioridade de um todo que ultrapassa o “nós”.


Na Leitura 3, não há todo além de “eu”. Cada uma dos “eus” é um todo diferenciado, mais ainda, fragmentado. Cada átomo (indivisível) é um “eu” que é ao mesmo tempo totalmente singular, mas fundamentalmente igual em qualquer um “eu”. Cada “eu” é um átomo diferenciado, uma unidade indivisível que se singulariza e se diferencia dos demais, e isto torna todos os “eus” em um “nós”. Todos nós somos “eus” singulares. As relações de cada “eu” com outros “eus” se dá por interesse de preservação de si e ampliação de sua propriedade, a qualidade de ser próprio de cada “eu”.


Dito isto, agora podemos nos voltar ao seu início: “um universo em constante projeto criacionista.” Encontramo-nos faceados por algumas questões. Primeiramente de um universo em constante criação como resultante de um projeto, podemos dizer, então, de um universo criando (o gerúndio nos permitindo este criar constante), o qual nos apresenta duas possibilidades. Primeiro, como o projeto presente a uma mente de um Arquiteto que o cria. Assim, a criação está acabada na mente do Arquiteto, mas falta a engenharia realizar o que a arquitetura já projetou. O projeto Arquitetônico, a finalidade e a ordem do universo, está dada, enquanto o projeto de engenharia se realiza constantemente, conforme a arquitetônica projetada.


Neste sentido o todo arquitetônico está além da soma do todo das partes. Todas as ações dos construtores estão aquém do projeto e para ele se encaminham. Não sabemos quanto já foi construído e quanto falta, mas sabemos que há um projeto arquitetônico e que os construtores trabalham, mesmo ignorando tal fato, em favor dele.


As grandes narrativas escatológicas (teológicas ou materialistas-seculares) funcionam por ai. Haveria um projeto de um mundo sem dores, sem lágrimas, sem injustiça, dado desde sempre e nos encaminhamos para lá, mesmo quando lutamos contra ele. Nega-lo, aceita-lo ou colaborar com ele não muda em nada sua progressão. O homem e a História não se relacionam. Por exemplo, a História é um desenrolar de fatos e acontecimentos que culminarão na ditadura do proletariado, a despeito da aderência individual a este movimento da História. Tal Arquitetura fecha o universo a partir de um projeto, no qual os fatos constantes apenas realizam-na. A realidade é arquitetural, enquanto os fatos constantes são aparências projetadas.


As Leituras 1 e 2 se encaixam quase que perfeitamente neste esquema. A História se encaminharia quer para o reconhecimento do Todo exterior, quer para o conhecimento do todo interior. Mas a Leitura 3 se encaixaria se pensássemos numa ideia de Progresso racional. A razão, igualmente presente em todos os indivíduos, nos conduziria a uma Verdade última. Verdade racional que faz com que cada indivíduo livre, sem que sobre ele pese qualquer coação ou limite, pode ser sua totalidade, singular e diferenciada. As Leituras 1 e 2 podem nos dizer que o “eu” seria como que um “outro”. Na Leitura 1 o “eu” seria como um outro exterior, um além-do-nós, um todo, e na Leitura 2 o “eu” seria um outro interiorizado, um “nós” interior, um todo interiorizado. Nas Leituras 1 e 2 o “eu” é dissolvido e na Leitura 3 é falsamente absolutizado, conquanto o “eu” é idêntico a qualquer “eu”.


Tomemos sua proposição “um universo em constante projeto criacionista”. Façamos um contorcionismo proposital, enfatizando o “constante”. Se o projeto for a criação de mudanças constantes? Se a única constância for a mudança? O universo seria aberto e o projeto seria uma criação de mudanças sem um Arquitetônica que imporia um fim e sentido. Aliás, o sentido seria as novas e constantes adaptações de cada parte com as demais partes. Não haveria um todo, uma vez que as constantes mudanças afetariam as fronteiras e os conteúdos. O Big Bang nos daria uma boa metáfora, pois o universo se expande sobre o nada, enquanto o próprio universo, em seu interior, se modifica. O universo seria inconstante e a criação seria constante, e o projeto seria uma constante criação em um universo sem forma e sem fronteiras.


Trazendo isto para o “eu” como um universo frente ao nós que se cria e recria, poderíamos dizer: o eu inconstante diante da memória, das experiência e das projeções, posto em meio a um “nós” sem fronteiras claras, em constante transformação. O todo não há, pois que a cada momento de sua inconstância se transforma e muda, de tal maneira que o todo de agora não se identifica com qualquer outro todo de antes e que porventura viesse a ser. O “nós” por sua vez é aquele que o “eu” puder vir a reconhecer e ser afetado por ele. O eu não seria um nós, inidentificável, pois o “eu” seria as rememorações, as experimentações e as projeções renovadas que não totalizam a identidade em si, mas que o expõe a um “nós” mutante.


O “eu” identifica-se e não se identifica consigo, assim como o “eu” acolhe e não acolhe, é acolhido e não é acolhido no mútuo reconhecimento do “nós”. Eu sou e não sou o nós e o eu, ao reconhecer e acolher um projeto de criação constante.

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