Golem
- Marcos Nicolini
- Jan 20, 2024
- 6 min read
Outra vez com um texto de Gershom Scholem. Desta vez: O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I
Devo dizer que me senti frustrado, pois tendo lido o trabalho de Scholem sobre a Cabala, em especial sobre o Golem e me familiarizado com textos do engenheiro Norbert Weiner sobre cibernética e em especial o seu sobre o Golem, havia ficado com aquela sensação de
“EUREKA!”. Pensava eu estar diante de uma conexão entre Cabala e Cibernética ainda não explorada. Mas este capítulo do Scholem sobre o Golem jogou sobre mim um balde de água fria, enquanto me entusiasmou no sentido de não estar delirando, ou, como dizíamos antes, surfando na maionese.

Não apenas a ideia cibernética sobre máquinas que operam a partir de retroalimentação e contra a entropia, o que pretende desfazer por completo a distância entre a vida biológica e da vida artificial, mas como, além disto, a ideia de cibernética como centrada na informação, isto é, na linguagem matematicamente suportada.
Não entendo de cabala, mas o pouco que pude compreender da leitura de Scholem e em Weiner, as letras do alfabeto dos hebreus são números. Por exemplo, o Alef ( א, ʾālef), a primeira letra do alfabeto também é o número 1. Portanto, escrever uma frase qualquer é escrever uma sequência numérica. A partir desta premissa, para os cabalistas (o Golem é um produto da cabala) a Torá (que os cristãos chamam de Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia) é um texto escrito numa sequência determinada por YHWH (sem a existência de distância entre as letras, nem pontuação) e a alteração de um pequeno sinal muda todo o mundo, toda a Criação. A cabala é, então, o esforço por decifrar o mistério (mística) desta criação e apropriação da potência criadora a fim de produzir mundo, vida. Neste esforço se faz ao buscar no texto (a Palavra de Deus) a potência criadora, não nos deixando esquecer que o texto é sua numerologia.
A cabala tem (salvo engano) seu início por volta do século XIII, enquanto o Golem por volta do século XVI. O que me chama a atenção neste jogo de datas e místicas é que Galileu Galilei, por volta do século XVI-XVII havia dito que o Cosmos é um livro aberto cuja linguagem (para seu deciframento) é a matemática. Não que Galileu seja um místico e muito menos que tenha se envolvido com a cabala. Mas que as datas nos permitem perceber movimentos convergentes em datas aproximadas.
A cabala é um movimento místico de deciframento dos mistérios da escritura divina (a Torá) cuja linguagem é “alfabética”-numérica; enquanto o cosmos (o mundo ordenado) é uma escritura cuja linguagem é numérica. Com esta aproximação, não desprezando suas especificidades, podemos voltar ao Golem, não nos esquecendo que o desvendamento da linguagem de YHWH nos confere o poder de gerar certo estágio de vida. Dominar a linguagem divina é ter o poder que está inerente a ela, desde que saibamos sua sequência perfeita. Ou seja, uma vez tendo a ciência do modelo podemos modelar coisas tal qual YHWH. Ora, conhecer a linguagem criadora de mundo é conhecer a matemática que subjaz a este mundo. Pensamos nisto quando aproximamos cabala e Galileu.
Feito tais considerações, podemos voltar um pouco e relembrar o que é o Golem. Conta-se a história de um Rabino em praga que conhecendo os mistérios ocultos na Torá, fez com as próprias mãos, tomando um punhado de barro, um boneco antropomórfico (lembramos que no Gênesis 2:7 YHWH - ou Elohim - tomou barro e formou o humano). Após formar um boneco de barro em forma humana lhe falou algumas palavras, os nomes de Deus, ao que o boneco tomou vida. O sentido, a finalidade deste boneco era realizar tarefas ao Rabino, no âmbito doméstico, segundo seu comando (aqui não devemos passar despercebido e esquecer que a palavra “robô” advém da palavra theca “robota” que significa “trabalho forçado” ou “servidão”, e que Praga é a capital da Repúbica Tcheca).
Uma das histórias em torno deste tema dizia que havia um “dispositivo” posto em sua testa que permitiria a paralização do Golem, seu retorno ao estado de barro sem vida, quando preciso fosse. Na testa do boneco de barro o rabino havia escrito a palavra Emet (אמת - Verdade), mas que ao retirar a letra Alef ( א, ʾālef) tal palavra se tornaria Met, que se trados como morto. Em dada ocasião o rabino precisou sair de casa para ir à sinagoga e se esqueceu de “desligar” o Gole. Este cresceu e passou a causar dados e medo aos seus vizinhos. Quando o rabino voltou para casa, aquele boneco era um gigante descontrolado. O rabino, então, ordenou-lhe que se dobrasse a fim de que sua testa ficasse acessível, sendo obedecido pelo boneco com vida. Mas ao retirar o Alef da palavra Emet o Golem desmoronou sobre seu criado matando-o. Não precisamos ir mais adiante nesta história, pois o que nos interessa já é dado.
A uma porção de matéria-prima informe lhe é dada certa forma, transferida para ela uma linguagem que lhe permite um estado de vida tal que sirva a seu criador e um dispositivo que permite seu desligamento. Esta é a base, diz-nos Scholem e Weiner, da cibernética e da robótica, a qual sobrevive até ao desenvolvimento da I.A. e da engenharia genética.
Neste ponto de minhas leituras duas questões se apresentam. Primeiramente que a engenharia genética, até onde sei, se funda no conhecimento do DNA e este por sua vez é descrito pela letras A, C, T e G, bases nitrogenadas que compõem as porções da dupla hélice do DNA. O fim da engenharia genética é a criação de um novo humano que responda às demandas de um ideal de humanidade. Sobre a base material do humano atual (sua estrutura biológica – seu corpo -, sua base físico-química) criar uma outra humanidade. Para se criar tal novo homem o antigo há de ser nadificado, isto é, o humanos que era espírito (pneuma em grego bíblico), alma (psiquê em grego bíblico) e corpo (somma em grego bíblico) aos pouco foi reduzido a um corpo e tal corpo exposto às experimentações como se fosse matéria-prima ao conhecimento, à linguagem da ciência moderna: o cálculo, a numeralização.
Esta arqueologia que vai desde o humano como primícias da Criação, até sua degenerescência em corpo, matéria-prima amoldável pela gnose, pelo conhecimento exige um capítulo à parte que não cabe aqui.
A segunda questão se dá em torno da I.A. (inteligência artificial). As neurociências e a engenharia da I.A. têm se aproximado e o estudo das redes neurais tem sido a base sobre a qual se produz, desenvolvem softwares neste campo. O propósito, ou a finalidade, o fim deste projeto é conceber um código, algoritmos que não apenas “funcionem” como um cérebro, mas que possa, em dado momento obter alguma forma de consciência, de inteligência e autonomia para com o seu criador: a humanidade. Os produtos de I.A. então estarão ultrapassando o que se chama de Singularidade, ponto de ruptura da criação em relação ao criador em que os softwares não apenas se auto desenvolverão, como, ainda mais, suplantarão exponencialmente a capacidade de inteligência biológica. Aqui não se trata de criar uma nova humanidade, mas uma criação que rompe com os limites somáticos humanos e se trona autônomo, autossuficiente e autárquico. Um ser, caso possamos chamar assim, que prescinde da matéria, embora seja materialismo elevado a enésima potência: fruto do sonho mais distópico do neoplatonismo e do gnosticismo.
De igual modo, a arqueologia e a genealogia desta crença distópica cujas origens estão em Pitágoras, Parmênides, Platão, os neoplatônicos, os gnósticos, certas correntes da mística cristã medieval e da mística cabalista, não são objetos desta breve fala, mas merece desenvolvimento específico.
O que me importa aqui é perceber que a secularização das crenças modernas não apenas não advém do gênio moderno, antes, nutre-se e embebeda-se do pensamento religioso e místico com o qual diz romper e superar, como também esta nova mística gnóstica moderna aponta para o fim buscado por seus primeiros pensadores: o fim da humanidade em sua demanda não apenas material, como psíquica e espiritual. O Golem do homem moderno se torna independente do seu criador e, diferente da mística e sua história do rabino de Praga, tal Golem ameaça tirar o Alef que YHWH imputou no humano quando lhe soprou a alma viventi.
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