Golpe de Estado
- Marcos Nicolini
- Sep 17, 2023
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Vou me permitir tomar o Dicionário de Política, Volume 1 (A-K), organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, publicado pela Editora UnB, 13ª edição, em 2010, a fim de pensar sobre um conceito, ainda que introdutoriamente. Tomo o verbete Golpe de Estado, que nesta publicação se encontra a partir da página 545.

Neste se procura apresentar a evolução do conceito e a diferença deste para o de guerrilha, revolução e sublevação, e tal diferença fica clara quando se lê: “o Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado.” Mais adiante vamos ver que o Golpe de Estado “chega até a confundir-se com ‘Razão de Estado’”. Enquanto aqueles são atos realizados por agentes fora do Estado.
Gostaria, então, de ressaltar a perspectiva de que o Golpe de Estado é um ato de agentes do Estado com propósitos específicos. Em uma primeira aproximação do conceito analisado neste verbete, o Golpe de Estado é um “ato levado a cabo pelo soberano para reforçar o próprio poder. Esta decisão é geralmente tomada de surpresa, para evitar reações por parte daqueles que deverão sofrer as consequências.” Poder soberano aqui, lembremos, pode ser de um ou de alguns, isto é, daquele ou daqueles que detém este poder.
Sublinhamos, assim, que o Golpe de Estado é um ato realizado por agentes do Estado, que pode se confundir com Razão de Estado e visa reforçar o poder daquele(s) que o detém, guardando segredo até que se realize, fazendo cair sobre outros as consequências negativas.
Visa mudar a forma de Governo, isto é, o Estado, a partir de um ato violento e que traz consigo a ruptura constitucional. Nas palavras do dicionário: “Golpe de Estado como uma violation déliberée des formes constitutionelles por um government, une assemblée ou um groupe de personnes que détiennent l’autorité.” O Golpe de Estado não é um ato poupular, nem de manifestantes da sociedade, mas de um grupo que detém poder e recursos para, rompendo com a Constituição vigente, implantar outro Estado. O Golpe de Estado é um ato realizado por quem detém o poder a fim de, rompendo com a Ordem Constitucional, determinar pela força outro Estado, isto é, Constituir outra Ordem.
O entendimento sobre tal conceito, no entanto, sofreu uma mudança. Deixando de gravitar em torno de um ato exclusivo do poder soberano, passa a concentrar suas atenções para uma realização executada por militares, ou seja, “o golpe militar ou pronunciamento [...] tornou-se, assim, a forma mais frequente do Golpe de Estado.”
Os atores, num momento de reflexão sobre a questão, colocam a pergunta: “quem o faz (Golpe de Estado)? No primeiro caso o soberano; no segundo, o titular ou titulares do poder político legal; no terceiro caso, um setor de funcionários públicos, ou seja, os militares [...].” Antecipando o tema, podemos desconfiar, aqui, que poderíamos pensar em um quarto caso, daquele realizado por funcionários públicos que detém o poder legal de fazer valer alguma interpretação não canônica da lei ou mesmo em suspender a constituição de modo não constitucional. Suspender a lei e legislar conforme a utilidade que a Razão de Estado, segundo as exigências de sua perspectiva. Os dicionaristas não puderam ver esta aberração em realização, mas que move de um Estado fundado no Estado de Direito e no império da lei (como querem os positivistas e os liberais) para um Estado decisionista (como querem aqueles que trilham a via de Carl Schmitt).
Uma vez que o Golpe de Estado venha a ser pensado a partir da perspectiva de um ato militar, neste terceiro momento a que voltamos, deve-se diferenciá-lo da guerrilha, da revolução e da “sublevação entendida como insurreição não organizada, que tem escassas ou nenhuma probabilidade de triunfar na tentativa de derrubar a autoridade política do Estado moderno”, enquanto a guerrilha e a revolução visam minar ou derrotar as forças armadas do Estado.
Simbolicamente, ainda que de pouca eficácia, o Golpe de Estado traz como objetivo a ocupação das sedes do poder, isto é, os edifícios nos quais operam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. No entanto, o sucesso deste está em “ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, tais como as redes de telecomunicações, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos rodoviários e ferroviários.” Deveríamos ampliar esta lista para o controle da informação que trafega em redes sociais e novas mídias sociais. O controle sobre a fala e a produção e difusão de narrativas é uma ação estratégica de um Golpe de Estado.
Não apenas o Golpe de Estado passou a ser operado por novos protagonistas, movendo-se do poder soberano, para os militares e destes para aquelas agências e instituições que controlam a tecnologia, a informação e a energia. O fato é que, nesse novo momento, “o primeiro objetivo do Golpe de Estado é a conquista dos centros tecnológicos do aparelho estatal, para alcançar o intento é necessário, ou que aquelas forças sejam neutralizadas.” Mais além apenas de neutralizar os centros de produção e distribuição de tecnologia, informação e energia, é cooptar as forças armadas, ou, nas palavras do dicionário, a “neutralização das forças armadas por ocasião do evento e que na realidade implicaria num apoio passivo ao Golpe de Estado.”
Controlando a tecnologia, a informação, a energia e as forças armadas, o Golpe de Estado subordina as instituições governamentais a uma nova constituição que define outro Estado. De modo relevante, devemos por em relevo o fato que um Golpe de Estado não se faz sem ou a participação ativa das forças militares, ou sem coopta-las, neutralizando sua ação de resistência e impedimento da instauração de uma outra constituição de Estado.
Podemos então reproduzir o conceito a que chegam os autores: “o Golpe de Estado moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante ação repentina, que tenha uma certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física.”
O objetivo de um Golpe de Estado está na constituição de um outro Estado, uma ruptura com o Estado vigente, a partir de ações estratégicas que capturem os centros tecnológicos, de informações, energéticos e que tenham colaboração ou cooptem as forças armadas, isto é, “implica na instauração de um novo poder de fato, que imporá por sua vez a legalidade [...] o ordenamento jurídico deverá considerar-se novo por ter mudado o motivo de validade [...]”, isto implica que “o Golpe de Estado como uma revolução no campo do direito e não no campo da política.”
O Golpe de Estado é no mais das vezes utilizado pela direita, segundo o referido dicionário. Contudo, podemos ajustar esta fala e dizer que o Golpe de Estado é um dispositivo daqueles que na iminência da perda da legitimidade do poder buscam conservá-lo alterando os “fundamentos” do poder, isto é, um novo ordenamento que valide o poder. Assim, o Golpe de Estado seria um dispositivo conservador, que pretende conservar o poder a partir de novo ordenamento jurídico, pelas vias já descritas acima.
Esta breve leitura do verbete Golpe de Estado do Dicionário de Filosofia nos permite perceber os objetivos (conservação do poder por um Governo que perde a legitimidade, degenerescente), os meios (o controle da tecnologia, da informação e da energia), operando mudanças judicias (diríamos que no caso presente se move de um Estado de Direito Liberal para um Estado Decisionista, da lei para a decisão soberana), ainda que conserve a fachada política (democracia liberal).
Qualquer semelhança é apenas copy-cola de um manual de golpista. O resto é mentira.
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