Grafia da inconsciência
- Marcos Nicolini
- Nov 20, 2020
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“Olho esta folha de papel colocada sobre minha mesa; percebo sua forma, sua cor, sua posição. Essas diferentes qualidades têm características comuns: em primeiro lugar, elas se oferecem ao meu olhar como existências que posso apenas constatar e cujo ser não depende de modo algum do meu capricho. Elas são para mim, não sou eu. Mas elas tampouco são outrem, isto é, não dependem de nenhuma espontaneidade, nem da minha, nem de uma outra consciência. Estão presentes e inertes ao mesmo tempo. Essa inércia do conteúdo sensível, tão frequentemente descrita, é a existência em si.” (SARTRE, Jean-Paul; Imaginação; Porto Alegra: M&PM, 2017, pg 7)
Atrevamo-nos a pensar tomando a perspectiva possibilitada pelas quatro causas aristotélicas e questionar esta existência em si do papel.

Aristóteles nos propõe que os entes cuja existência não são por si, mas advém do fazer de outro, têm quatro causas, a saber:
1 - a causa material: a matéria utilizada, diríamos hoje, o material do qual é feito o produto;
2 - a causa formal: o formato impresso na matéria e que conferirá a aparência, o alinhamento do ente;
3 - a causa eficiente: ou seja, o agente que tomando a matéria, imprime nesta uma forma;
4 - e a causa final: o uso proposto, o propósito deste ente resultante do fazer.
Uma folha de papel em branco tem como causa material a celulose, extraída principalmente da madeira das árvores;
A forma básica de uma folha de papel é uma superfície plana (na maior parte das vezes, quadrilátera), lisa e de espessura mínima, apta para receber impressões e que absorva tinta ou grafite, grosso modo;
O papel é um artefato humano, o resultado de uma ação humana sobre a madeira, a celulose. A existência do papel não é por si e, portanto, não é em si, mesmo como espaço aberto para a grafia, o traço, a marca, a impressão.
Então, podemos nos deparar com o problema da existência por si. A partir desta perspectiva, o telos, o sentido, a finalidade da folha do papel não é desprovida de uma intencionalidade, mas traz em si a marca prévia da intenção do produtor deste dispositivo.
O dispositivo a que chamamos de folha de papel em branco, já traz em si, em sua existência, a marca, rastro, ou se quisermos, a grafia do homo fazer, do causador. A característica da folha em branco de papel não é uma causa sem causa, um ente ex nihilo, uma existência desprovida de sentido, que é em si, como que um estar diante de mim sem que este estar já não implique num dever.
A folha de papel não existe sem que traga em si a determinação, alhures, de um grafar. Não está ali, em sua forma, cor, textura, dimensões e posição como alheia e alienada de força que implica em fazer grafar. O branco da folha já é determinado por aquele que a tendo diante de si o faz branco, liso, fino, leve, durável, apto à grafia, implicando o dever grafar. A folha em branco constrange o grafista a grafar, enquanto o grafista requer a característica da folha para que venha dela tomar a utilidade, a causa final a ela determinada.
A distância entre a finalidade da folha e a finalidade do grafista é mínima, ainda que distintas. O liame que os separam é ainda menor do que a espessura, ou ainda menos do que a distância entre o papel e a tinta que o marca.
A folha de papel leva uma vantagem sobre o grafista. A folha se diferencia, assim, dele, em ser folha. De papel em branco. Enquanto artefato, manufatura de outro, a qual leva impresso o propósito alheio, numa materialidade alheia, segundo a imaginação formal alheia, é a folha de papel, não consciente em si, mas consciência dispositivada de um outro. Assim podemos perguntar o que é este ente que deixa ali na folha em branco sua marca? A folha em branco se aproxima do grafista, pois traz em si a marca de outro, mas em sua inércia, reclama, demanda, exige a marca de um outro, outro. O grafista, assim, não tem consciência que a folha lhe demanda, obriga a grafar. Isto é a folha: um artefato cuja finalidade é demandar uma grafia imposta por um fazer humano. A folha de papel é um dispositivo dispositivante. A folha, em si, não é consciente, no entanto, é a marca da consciência de uma dominação.
A folha é o trabalho do homem sobre as coisas que impõe ao homem o trabalhar sem consciência de seu próprio trabalho, como dispositivo dispositivado. Quando olhamos a folha em branco sobre a mesa, disposta de tal maneira, ali como que deixada ao acaso, perdemos a consciência que a folha é o agir sobre as coisas a fim de que a um grafista seja determinado grafar, necessariamente. A folha já é, em si, a consciência alienada de uma imposição a um grafista. O grafista exige a folha em branco, a qual exige o grafista.
Ao fim, ou, tendo como fim a mínima distância entre a folha e a entrega da grafia na folha, entre a materialidade da folha e o grafista. A folha é a marca da perda da consciência livre de si. A folha é a marca da existência em si do grafista, o qual nada mais faz do que cumprir seu fim pela grafia.
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