Jesus, o homem...mas apenas isto?
- Marcos Nicolini
- Feb 9, 2017
- 8 min read
Updated: May 28, 2020
EHRMAN, Bart. Como Jesus se tornou Deus. São Paulo: LeYa, 2014
Em seu livro, “Como Jesus se tornou Deus”, Bart Ehrman apresenta a tese de que Jesus não era crido pelos primeiros discípulos como sendo Deus, e nem mesmo ele se colocava como tal. Antes, Jesus era um profeta apocalíptico que foi transformado em Deus pelos cristãos

posteriores, a partir do segundo século. Percebamos que o título do livro não é posto como pergunta, mas é feita uma afirmação, a qual diz: Jesus foi tornado Deus, agora, precisamos entender este movimento e reconduzir este homem à sua historicidade. Segundo o autor, o discurso teológico sobre o Jesus-Deus tem seu acabamento no concílio de Nicéia, no século V dC. A tese de Bart Ehrman se baseia em dois argumentos, a saber:
1o argumento: Assim como os povos pagãos acreditavam que um humano pudesse ser divinizado, também os hebreus, ou judeus, acreditavam nisto.
2o argumento: Jesus foi discípulo de João Batista, o qual era um apocalipsista, portanto, Jesus era um apocalipsista durante toda sua vida como pregador.
Vejamos os dois argumentos e suas limitações na produção de sustentação à tese do autor.
1o argumento: Os hebreus e os cristãos, do primeiro século, tal qual os pagãos, acreditavam em humanos-divinos.
O autor nos diz que há três maneiras para que um indivíduo humano se tornasse um deus:
1 – Quando um deus se apresenta aos humanos em forma humana;
2 – Quando um humano é filho de um deus com uma mulher humana;
3 – Quando um indivíduo se destaca da coletividade, por seus feitos heroicos, ou de genialidade, sendo reconhecido por outros humanos, como deus.
Some-se a estas vias divinatórias, uma hierarquia, cuja ordem advém dos deuses, indo até os humanos:
1 – Deuses
2 – Daimones (espíritos que influenciavam os humanos)
3 – Humanos-divinos
4 – Os heróis e os grandes homens
5 – Os humanos comuns
Como podemos notar, havia um encadeamento que ligava, ininterruptamente, os deuses aos humanos não notáveis, sem descontinuidade ou ruptura. Do lado pagão podemos apontar narrativas e relatos que nos falam sobre deuses se apresentando como homens, em meio aos homens. Em alguns momentos, tais divindades em forma humana mantém relações sexuais com mulheres gerando homens-divinos (como Aquiles, ou Hércules). Também podemos perceber a divinização de grande homens, como os imperadores de Roma.
O autor nos diz que podemos notar as mesmas evidências ao estudarmos as narrativas e relatos dos judeus. Anjos, ou seres divinos que se apresentam aos humanos, como em diversas vezes o fizeram a Abraão e Jacó. Assim como homens notáveis que foram exaltados como sobre-humanos, como os santos da Igreja. E no caso de Jesus, a crença de sua concepção a partir da relação de uma mulher com Espírito Santo, isto é, Deus.
Haveria, igualmente, uma hierarquia desde Deus, passando pelos anjos (e toda hierarquia angelical), Jesus-Deus-Homem, os além-do-homem (os santos cristãos e os grandes homens do Velho Testamento), e, por fim, a humanidade (separada entre os eleitos e os pagãos). Cabe notar que o espaço preenchido por Jesus, no Novo Testamento na crença cristã, seria ocupado por Moisés, no Velho Testamento e na crença rabínica. O humano divino é o indivíduo que compartilharia esta dupla natureza: humana e divina. Tanto ocupa a dimensão espaço-temporal, quanto traz em si a marca do deus que o gerou, ou que o adotou como Filho.
Visto desta maneira, ou, a esta distância parece que o argumento é sólido e consistente. Mas, antes de anuirmos a este, devemos nos aproximar um pouco mais e ver se é possível estabelecer um paralelo entre a crença pagã e a crença judeu-cristã que sustentariam a divinização de indivíduos humanos. Vamos procurar entender, primeiramente, a cosmologia pagã (grega), vis-a-vis com a criação, segundo a narrativa judeu-cristã.
Para os gregos o cosmos é tudo o que há e não há nada fora dele. Deuses, daimones, super-homens, humanos, animais, vegetais, minerais, etc., tudo está no cosmos e é cosmológico. Os deuses estão no cosmos e encantam-no, enquanto o cosmos seja habitado por deuses e demônios é encantado. A diferença entre deuses e humanos é de poder: os humanos são mortais e os deuses imortais, os deuses têm mais poder do que os humanos e realizam coisas mais poderosas, extravagantes. É por conta desta diferença essencial, mas, entrelaçada e contínua de maneira evanescente, que se dá o encadeamento. Deuses e humanos estão conectados numa cadeia ininterrupta e regressiva, que vai até os elementos básicos que constituem a matéria. Os feitos poderosos de um indivíduo colocam-no em um lugar de visibilidade diferencial nesta cadeia.
Devemos notar, também, e isto está em Platão, mas também (de forma específica) em Aristóteles, que todos os seres trazem em si a representação do encantamento do mundo. De uma maneira encadeada, aquilo que torna um ente (por exemplo, o que torna um cavalo um cavalo) aquele ente em questão (o cavalo) é certa qualidade da alma. Entre um deus e um mineral, por exemplo, há uma cadeia ininterrupta e regressiva de presença da alma, do encanto, de certa divindade. Neste sentido, todo humano é um deus, participa da natureza divina, ainda que em menor proporção. No entanto, apenas alguns humanos reconhecem (lembram-se, como diria Platão) a alma divina que têm e vivem conforme a esta divinização, de maneira grandiosa, realizando feitos exemplares. O teatro, segundo Aristóteles, deve culminar com a catarse, com este ânimo sobre-humano, divino, sendo, portanto, uma arte de apontar o divino no humano comum.
Ademais, todo cosmos grego é fechado e finito, hierarquizado e encadeado, preenchido pelos deuses, animado, encantado. O cosmos grego além de finito e fechado, sempre idêntico a si mesmo, é ilimitado temporalmente, não tendo origem e nem fim, não tendo sido criado, portanto. Por conta disto, a vida é trágica, isto é, inelutável, não há ultrapassamento possível, tal qual podemos perceber nas tragédias, como por exemplo a de Ésquilo: Édipo Rei. Toda tentativa de romper com a tragédia é um cumprir a tragédia.
A cosmologia cristã não é grega, pelo menos até o século II dC., em diante. Para os judeus e para os cristãos há uma descontinuidade ontológica entre Deus, Criador, e a criatura. Há um ruptura radical entre Deus e a criação, que chamamos de transcendência. Há o cosmos, o universo, a criação, a natureza, e há Deus. O cosmos cristão a partir do século VI dC é finito, fechado e temporal, enquanto Deus não é categorizável. São substancialmente distintos, ontologicamente diferentes. Não há unidade, continuidade, encadeamento possível entre Criador e criatura. Mesmo entre Deus e os anjos, há uma descontinuidade, pois os anjos são criados, ainda que sejam diferentes dos humanos. O cosmos cristão não é encantado, pois Deus não habita aqui, e os entes não participam da natureza de Deus. A alma das criaturas não é graduação da Alma de Deus, ou, do Espírito Santo.
Mesmo a alma humana, que podemos chamar de razão, não é o Logos de Deus, a Razão divina. O humano não é um pequeno deus que se esqueceu, ou que se deixou esquecer de que participaria da natureza divina. O humano não é alguém que tendo parte com Deus, decaiu de sua posição original, filho de Deus, e se tornou aquém, demandando um ato, por parte de Deus, que o reconduza à casa de seu Pai. O humano é uma criatura entre criaturas, cuja razão desencantada, não compartilha da mesma natureza de Deus. O Deus cristão é o outro da criação.
Esta cosmologia e antropologia cristã não é a mesma que a cosmologia e antropologia greco-romana. Não há, para os cristãos, uma hierarquia que organize o cosmos desde Deus até o homem comum. Ainda mais, desde Deus, passando por anjos, santos, humanos, animais, vegetais, minerais, etc. Há Deus e a criação. Se Pseudo-Dionísio, no século VI dC. propôs a hierarquia celeste, o fez comparando a hierarquia dos anjos com aquela que deveria ser organizada pela Igreja. O paralelo é entre anjos e santos e não um encadeamento que passa por Deus e pelo Papa, até o homem comum. Há limites claros que inibem um paralelo direto entre a cosmologia e a antropologia pagãs e cristãs, uma vez que esta tem fundamento na transcendência e aquela no encantamento, ou animação, imanente.
Tendo em vista tais considerações, não nos parece aceitável o estabelecimento de um paralelo direto que coloque lado-a-lado Zeus e Deus, o daimones de Sócrates e o arcanjo Miguel, Júlio César ou Hércules e Moisés ou Jesus Cristo, Alexandre e Paulo. Seria como comparar uma peça lapidada de acrílico, em sua aparência, com uma peça lapidada de diamante. A questão da transcendência e da animação coloca uma outra questão: da filiação, ou mais precisamente, da passagem da humanidade comum para a condição de Filho.
A referência transcendental do Deus da tradição judeu-cristã determina a ausência de imagem possível, ou seja, não se dá ao sensível; por outro lado, a imanência cósmica dos deuses pagãos, quase que exclusivamente, determina suas representações imagéticas assemelhadas aos humanos, ou de animais e compostos. Isto implica em diferenças cruciais entre o paganismo e a tradição judeu-cristã, tanto quando se refere a um humano que é adotado como divino (um imperador, um herói, um profeta ou um santo), quanto quando se refere a um humano gerado na relação entre um deus e uma mulher humana (Hércules e Jesus).
A adoção na tradição grega, quando um humano é reconhecido como divino, se dá pelo reconhecimento da alma-encantada que até então estava eclipsada, ou, nos termos de um neoplatonismo, estava oculta pela sujidade da matéria, do corpo que corrompe. O indivíduo reconhece aquilo que é e que estava oculto. É um desvelamento de uma essência ocultada pela carne. O indivíduo reconhece-se e vai ao encontro de seu destino. Todo indivíduo é um deus que se esqueceu de sua alma divina. Mas cada indivíduo tem menor ou maior parte de divindade, o que o coloca numa posição específica na hierarquia cósmica.
No cristianismo se dá outra coisa, pois não há continuidade do homem e Deus. O humano não é um Deus que caiu do céu, antes, é humano, demasiado humano. A melhor metáfora aqui é de alguém que adota como parte da família, um cão, um gato, uma tartaruga, um pássaro, etc. Aquele animalzinho recebe todas as regalias de ser família, mas há, ainda, uma diferença (digamos, ontológica) entre o humano e o não-humano no interior daquela família. Deus (YHWH), levando esta metáfora adiante, não os torna deus (YHWH), mas deuses (Elohim ou adonai): senhores, juízes, ministros, embaixadores, representantes. Não nos tornamos assemelhados a YHWH, mas acolhidos como se fôssemos filhos, por adoção.
A percepção grega é otimista, pois o indivíduo reconhece em si a alma divina que está ocultada pela corrupção da matéria e passa a agir conforme seu ser, qual seja: um homem-divino. A percepção cristã é pessimista, pois o indivíduo voltando-se para si vê-se apenas humano e carente de recursos para dar o salto que o leve a transcender sua condição material. Enquanto o grego pode dizer que o corpo é a prisão da alma, o cristão contemplando seu corpo e sua humanidade, pode se voltar a Deus a fim de transcender sua condição inescapável, trágica. O grego ao contemplar o cosmos, desvelando sua essência divina, vê-se tragicamente ligado ao cosmos e seu otimismo não o capacita a ir além do sensível: finito, fechado, atemporal. O cristão ao contemplar a si e a Deus, desvelando sua natureza animal e a adoção divina anunciada, pode crer na experiência que o leva para além dos limites do imanente e o coloca diante do transcendente, num universo aberto, informe mas espaço-temporal.
O grego quando é adotado, toma um banho (despreende-se dos limites de seu corpo) e apreende sua condição de ser racional e compreende que seu corpo limita e restringe sua racionalidade: lembra-se que é divino; o cristão quando adotado, abandona seu habitat natural e passa a habitar numa casa indicada por Deus, como se fosse um filho, tendo como exemplo Abraão. A divindade grega é intrínseca ao humano, enquanto a divindade judeu-cristã é extrínseca e incomensurável. Neste sentido, um imperador romano, mesmo vivo, pode ser honrado e adorado como um deus, mas Paulo, o apóstolo haverá de dizer: “maldito homem que sou...mas graças a Deus...”. A adoção grega permite que o indivíduo se veja como divino e limitado por uma prisão que é seu corpo, enquanto a adoção cristã leva o indivíduo a compreender sua humanidade (uma criatura em meio à criaturas), mas com a possibilidade de transcende-la, ir além desta condição no reconhecimento do acolhimento: o cristão é um animal adotado pelo totalmente outro.
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