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Má-fé e masoquismo: Safatle e Hoppe exemplares

  • Marcos Nicolini
  • Jan 31, 2017
  • 6 min read

Updated: May 28, 2020

Parece-me um ato de má-fé intelectual, quando se sabe de algo, tem-se o conhecimento sobre um dado tema, mas, tendo em vista a intenção de afetar o ânimo e arregimentar disposições, a partir da premissa da ignorância alheia sobre o referido tema e a crença


daqueles na intelectualidade ostentada, quando alguém, suposto saber, fundado não no saber, mas na crença ideológica, nos mitos que uma ideologia produz e sobre o qual encontra vitalidade e vigor, distorce, inventa e produz verdades não compatíveis com a teoria e nem com os fatos.


Uma frase longa com 90 palavras. Não é fácil de ler, nem mesmo para quem a escreveu. Portanto, apelemos para exemplos. Dois, um de cada lado, afinal, os extremos se tocam ao final das contas.


Vladmir Saflatle, escrevendo na Folha de São Paulo, defendeu a teste do “Golpe”, impetrado pelos opositores ao PT e à Dilma. Este é um ótimo exemplo de má-fé intelectual, pois supõe-se que o Professor Doutor Livre Docente do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, saiba que a teoria política não lhe oferece razões e suporte para definir como “Golpe” aquilo que foi apenas um processo legal de Impedimento presidencial. Movido por sua ideologia política, marxo-leninista, o revolucionário sem causa tentou produzir uma nova-língua, baseada na ignorância de seus asseclas e fãs. Mais ainda, na aceitação sem críticas de suas alucinações. Golpeou a semântica da filosofia política, tentando trazer a teoria e a ação para o interior de suas crenças míticas e mitologias, visando arregimentar ânimo político contra um governo, o qual foi garantido por seu voto e apoio político. Pode-se esperar isto de um ativista, mas não de um suposto Filósofo.


Mas a má-fé de uns conta não apenas com o suporte de ignorância dos crentes, mas, por vezes, no masoquismo de certos leitores. Assim que me sinto diante da má-fé de Hans-Hermann Hoppe. Fico, a cada palavra, na dúvida crescente sobre a má-fé ou ignorância radical deste que se diz com formação em Filosofia, Sociologia, História e Economia. As inconsistências do texto e a ignorância demonstrada sobre alguns temas, a confusão de conceitos e as proposições absurdas, fazem de seu texto, “Democracia, o Deus que falhou” (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2014), uma obra de horrores, um amontoado de inutilidades e proposições descabidas. Tendo lido um pouco mais do que 64% do livro, não sei o que me conduz ainda a continuar. Masoquismo, por certo.

Os exemplos de confusão, erros, distorções, falácias proliferam e é difícil apontar algum que possa servir de exemplo unificador. Contudo me disponho a apontar um. No afã de defender a tese de que o Estado é o Mal a ser erradicado, o autor propõe a brilhante tese: “Para que surja um governo, é necessário que um desses juízes, árbitros ou empreendimentos de aplicação da lei seja bem-sucedido em estabelecer-se como um monopolista. Ou seja, deve ser capaz de insistir que nenhum cidadão possa escolher alguém além dele como o juiz ou o árbitro de última instância; e ele deve conseguir reprimir qualquer outro juiz ou árbitro de tentar assumir o mesmo papel (competindo, então, com ele).” (página 213)

Onde está o problema neste testo? As inconsistências abundam, mas uma já salta aos olhos, que é a confusão entre Estado e Governo, mais propriamente, entre a Lei e a Burocracia, numa concepção moderna. Um juiz é um burocrata e faz parte de uma instância de governo, enquanto a Lei, em sua pretensão de neutralidade e abstração, presentifica o Estado. A lei busca racionalizar as relações sociais e o juiz julga os desvios a esta racionalidade. O monopólio da Lei e da coação pertence ao Estado, o juiz ou o árbitro são agentes governamentais, burocratas que agem sob a autoridade do Estado, visando aplicação da Lei. Um Estado democrático e de direito, moderno, se dá quando uma Lei, um conjunto de normas, tem validade, jurisdição, num dado território, e é aceita por uma dada população para reger relações sociais complexas.

Um acordo, um contrato entre dois indivíduos exige que ambos aceitem um norma contratual comum, um código legal que encontra legitimidade em ambos. Os acordos definirão, grosso modo, um conjunto de direitos e de obrigações, com sanções em caso de descumprimento do acordo. Os desacordos são julgados por uma lei que é exterior ao contrato e por agentes supostos imparciais e também exteriores ao contrato, e as sanções são aplicadas por agentes de coação que são exteriores ao contrato. Tudo isto, a lei, o juízo e a coação, requer alguém exterior às partes e supostamente neutro. A Lei, as instâncias de ajuizamento e coação são legitimadas pelas partes, pois são elas que garante os contratos. Esta Lei, esta Justiça e esta Polícia devem ser homogêneas de tal forma que garantam o cumprimento do contrato. A aceitação recíproca (legítima) e num território, estabilizam o acordo. A Lei, a Justiça e a Política, instâncias exteriores e neutras, num dado território legitimados por uma população, chamamos de Estado.

O Estado não surgiu do monopólio de um juiz e de sua capacidade de impor. O Estado surgiu como instância reguladora das relações entre indivíduos e dos acordos que estes indivíduos realizam na sociedade civil. O Estado é este terceiro elemento com legitimidade espaço-temporal amplo que fundamenta e garante acordos entre indivíduos. O Estado substituiu a vingança, assumindo uma posição de pretensão de neutralidade. O Estado moderno de direito e democrático se dá quando a Lei não está vinculada a um indivíduo, o monarca, mas funda-se nos acordos dados na e pela sociedade, e se faz representar pelo governo. O Estado surge quando dizemos: vamos fazer um acordo, mas como um de nós pode vir a não cumprir tal acordo (direitos e obrigações), então fundemos nosso acordo na Lei (que não é nem a minha e nem a sua, mas de todos) e em caso de desacordo aceitemos ajuizamento externo (coação legitimada). Esta Lei, este ajuizamento e coação com amplitude territorial vasta chamamos de Estado.

O Estado, nem o Governo, surge do monopólio de um juiz, pois uma lei sem uma espada é apenas papel sujo. Será má-fé defender esta tese absurda. O Estado surgiu (5.000 anos atrás) quando um guerreiro (o dono da espada), buscando estabelecer o monopólio da produção de excedentes (para sustentação de seu palácio e de seus guerreiros) num dado território (ou espaço apropriado por ele por meio das armas), estabelece um domínio monárquico, autocrático e voluntarista sobre um território e sobre uma população (a qual é mantida viva a fim de produzir os excedentes). O Estado de direito surge quando monarcas, belicosos, percebem que obtém mais vantagens na guerra quando agem em comum acordo. Da discussão entre monarcas locais, que em grego é basileus, sobre a guerra e sobre o butim de guerra, que exige que uma lei mais ampla regule as relações transfronteiriças, surge a Lei e a política. A Lei que regulava as relações entre basileus, estende-se aos não guerreiros, constituindo uma Polis, uma Cidade. Neste momento as elites se ressentem da ampliação dos direitos e obrigações aos que não são aristocratas. É por isso que existem normas privadas e normas públicas: aquelas que regem as relações domésticas (no interior de uma basiléia) e as que regem as relações mais complexas entre agentes numa sociedade, as Leis.

O Estado democrático e de direito, na modernidade, se dá quando o juiz (os governantes) não é o indivíduo que detém o monopólio do uso da coação legítima, mas quando tal monopólio é regulado pela lei, segundo os acordos legitimados pela sociedade. O Estado é a transcendência na imanência da sociedade. O questionamento sobre a divindade do Estado moderno se faz em nome, contido, de uma divinização das elites e aristocracias. Estes indivíduos se autoproclamam superiores aos demais e se autodeterminam portadores dos valores superiores, os quais hão de ser impostos aos vagabundos e escórias (sim, este autor segrega os animais humanos em elite e vagabundos, entre cidadãos –proprietários – e bestas, etc.). Pessoas de má-fé defendem o retorno a um status quo ante dos basileus, os quais eram a lei, o juiz e as armas em suas propriedades, relegando o resto da sociedade a um desenraizamento radical e submetendo o resto a uma anomia abissal. Este é apenas um pequeno exemplo desta proposta anarcocapitalista defendida por pseudo-intelectuais de má-fé.

Por que continuo sangrando diante destas manchas irracionais em árvores mortas? Meu lado masoquista, por certo. Acho que isto vem de minha infância, quando gostava de ver filmes de ficção-horror de quarta categoria. Minha proposta, caso você queira ler este troço: não jogue dinheiro fora, melhor será que você compre um martelo e martele as pontas dos dedos dos pés, haverá menos arrependimento final.



Obs.: depois escreverei o que este assassino de árvores diz sobre a divisão da humanidade entre os que têm como horizonte o curto-prazo e os que têm o longo-prazo, os que buscam o consumo imediato e os que poupam, os bárbaros e os civilizados, os vagabundos e os gênios, os incompetentes e os competentes, os nômades e os proprietários, os latino-americanos e os europeus, os não-brancos e os brancos. Os que são por natureza escória e os que são por natureza elite. Fica para a próxima, se eu tiver estômago.

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