Niilismo e paradoxo
- Marcos Nicolini
- Oct 24, 2021
- 7 min read
Então o Senhor Deus fez o humano e o colocou no jardim. Disse, porém, ao humano: você está no meio de um jardim repleto de árvores. Digo que você pode comer de qualquer fruto que desejar, mas não coma do fruto desta árvore aqui, a que lhe conferirá o conhecimento do bem e do mal, pois se você o fizer você terá uma experiência com a morte que se expandirá em você.

(isto que eu fiz acima não é uma tradução, mas uma leitura, com a qual você pode não concordar, mas, eu a fiz e você leu, cabendo a você decidir se quer continuar a ler o que virá abaixo, ou parar por aqui e se poupar de extravagâncias e idiossincrasias, pois esta minha leitura é o anúncio de outras disjunções propositais)
Devo confessar que estou lendo o Gênesis bíblico em meio ao barulho produzido por outras leituras paralelas, uma dela é de Franca D’Agostinini, “A lógica do niilismo” (publicada pela Unisinos). Dizer que leio é quase uma mentira, pois leio uma palavra e descanso 5 minutos, leio outra e mais 5 minutos, assim por diante. Até onde consegui entender a proposta da autora é demonstrar, primeiramente, os elementos que estão presentes neste conceito; mas também a presença do niilismo na dialética de Hegel, na hermenêutica heideggeriana e de Gadamer, na diferença derrideana, no estruturalismo de Lacan e Deleuze e, obviamente, em Vattimo, Rorty, etc. Basicamente o niilismo em Hegel, de Nietzsche, nos filósofos influenciados por estes e aqueles da terceira geração. Mas o que me levou a buscar tal leitura, impossível para mim, deste livro foi a intima relação entre tais filosofias, a matematização do pensamento filosófico e o consequente da cibernética e daí das ciências cognitivas, da I.A. e da indiferenciação entre homem e máquina. O que me conduz a esta leitura, especificamente, é a percepção de uma lógica niilista nos movimentos filosóficos contemporâneos que se imbricam com um mundo entregue às máquinas. Um mundo da morte de Deus, mas também um mundo da morte o humano.
O niilismo é um materialismo que, no século XX e XXI esgota suas energias. O resultado de um fechamento entrópico que, até onde posso ir, é inaugurado com o estoicismo de Spinoza e seu dizer: Deus sive Natura. Fechamento que passa pelos Iluministas e por Feuerbach, e sua tese de que Deus é o produto da imaginação humana em busca de valore elevados. Mas, lembrando aqui de uma leitura paralela que consegui terminar (enquanto descansava 5 minutos), Ernst Cassirer e seu “ensaio sobre o homem” (Martins Fontes), posso dizer que a matematização do mundo e da racionalidade já estava presente nos pitagóricos e em Platão, passando por Descartes e Leibniz. Enfim, estou pisando em terreno ainda não explorado inteiramente. Mas, seguindo D’Agostini, a qual cita Jacobi, posso repetir: “o niilismo é um materialismo.” Em outros termos, o niilismo é um imanentismo radical, o fechamento do humano ao mundo sensível. Mas, ouso dizer, é mais do que isto...
Conforme pude entender de D’Agostini, são dois os elementos, não excludentes e também não necessariamente presentes simultaneamente, do niilismo: primeiro, um movimento decadencial de negação de todo fundamento último e todos os valores supremos, isto é, o niilismo é negação de quaisquer valores, dentre eles Deus, a Natureza, etc., por isto é um materialismo e um imanentismo radical. Ressaltando, contudo, a negação dos valores na lógica, ou seja, numa lógica desprovida de valores supremos e fundamentos últimos, apenas movida por relações internas; segundo, o niilismo age negando a verdade e o faz por duas vias, uma que diz que não há verdade, outra que diz que há uma pluralidade de verdades, ou seja, onde tudo é verdade, nada é verdade. O multiculturalismo pode ser tomado como uma expressão deste niilismo plural, onde cada verdade é tanto radicalizada na narrativa de cada cultura, quanto é relativizada na guerra cultural.
Não desejo aqui, por incompetência e respeito a quem porventura ousar ler alguma coisa até aqui escrita, traçar o caminho analítico da autora, extremamente precisa e técnica, até onde posso avaliar. Mas, permitindo-me um spoiler do livro, seu trabalho visa conjugar a negação do fundamento último e dos valores supremos com a pluralidade das verdades, o que exige uma estratégia filosófica singular, mais propriamente, uma lógica niilista. Assim, demonstrar a logica niilista de cada filosofia elencada acima e na consequência cibernética deste movimento, em outros termos, mostrar a intima relação entre tais filosofias e a matematização lógica do pensamento filosófico.
O pensamento filosófico é, por premissa, um questionamento das verdades correntes, presentes e aceites. Fazer filosofia e, posteriormente, fazer ciência (quer seja as ciências da natureza, como as ciências sociais) é questionar as verdades correntes, aceites, visando ampliar o saber. Diferentemente do conhecimento trilhado com a presença de uma fé religiosa, para a qual é legítimo questionar a veracidade do mundo, mas não o fundamento último da fé que é aquela em Deus. Lembramos, a propósito, aquela máxima de Aristóteles que diz: sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade. Este é a dinâmica interna à filosofia e que move a busca por conhecimento, questionar qualquer verdade em vista de uma verdade ainda mais ampliada. Karl Popper, filósofo da ciência, propõe como princípio que a ciência é aquele discurso falseável, ou seja, não apenas que não é dogmático, como pode e deve ser superável por saberes posteriores, o que implica em questionar as partes e/ou o todo de qualquer saber científico prévio. Este é o princípio de negatividade do niilismo: questionar os saberes estabelecidos. Esta lógica está presente em toda a filosofia Ocidental, desde sua origem.
Mas a lógica do niilismo não fica apenas na negação dos valores últimos, mas, articula, hora por meio da dialética, hora por meio da hermenêutica e da diferença, a busca por uma superação, o, nos termos de Nietzsche, transvaloração. Na dialética hegeliana a lógica do niilismo parte de um valor, uma positividade com a qual se contrapõe uma negatividade, uma negação do valor prévio, isto é, do conceito, da racionalidade. Este encontro dialético do valor com sua negação, do conceito com a realidade material, redunda numa negação da negação, isto é, numa, chamemos assim, positividade precária, a qual será contraposta a outra negatividade, e assim por diante, num movimento da linguagem, que traz consigo a ideia de recursividade, face à pluralidade de verdades possíveis.
No caso da hermenêutica há o saber prévio que se depara com algo que desafia tal saber, uma diferença que reclama um movimento participativo (Gadamer, segundo D’Agostini, diz que theoria no grego expressava a participação do indivíduo na procissão na festa a um deus, portanto, o conhecimento teórico é a participação de saberes prévios diante de diferenças). Então, há o saber prévio, uma diferença que questiona este saber e o movimento participativo, que não é dialético, mas é similarmente recursivo, pois se repete continuadamente. A hermenêutica ocorre neste círculo fechado, embora não concêntrico, da linguagem. Como linguagem opera como lógica, com estruturas formais, e niilista pois adere ao fechamento materialista da linguagem e sua imanência radical, colocando em questão saberes prévios e adotando a possibilidade de verdade plurais.
Quer se trate da dialética, quer se trate da hermenêutica e da diferença, ambas estão contidas no universo fechado da linguagem, portanto de sua formalidade, lógica, e seus esquemas de recursividade, de encontro com posições precárias, as quais serão contrapostas com outras negatividades e aderindo a uma verdade provisória: pluralidade de verdades. O que é importante salientar que esta linguagem com que nos deparamos é aquela que está restrita e circunscrita ao campo da materialidade e da imanência radical. D’Agostini sinaliza brevemente a impossibilidade, baseado nos trabalhos do matemático Gödel e do filósofo da lógica Tarski, de sistemas de linguagens fechados (tomando aqui a matemática e a lógica, portanto a linguagem com referências) tarem conta das suas proposições, ou seja, para que um sistema de linguagem possa dar conta de seus paradoxos deve recorrer a elementos extralinguísticos, transcender os limites da própria linguagem. Em linguagem metafórica, poderia dizer que temos um conjunto de incógnitas N e um conjunto de equações M, tal que N>M, portanto, para resolver a este desafio há de se recorrer a algo fora do sistema de equações, isto é, um “agente” exterior (metalinguístico) há de arbitrar um dado para que se possa suplantar o desafio. Caso contrário as aporias operarão como entropia, como ruídos comunicacionais.
Estamos no ponto da leitura do Gênesis em que Deus diz ao humano: se você desejar e realizar o desejo de tal modo a se mover pelos sentidos, isto é, olhar para o fruto, desejar o fruto, tomar o fruto e comê-lo, ou seja, corporificar o desejo, então você degenerará para uma condição de imanência radical, de materialidade que sua vida será limitada por sua temporalidade biológica e seu conhecimento será restrito a uma lógica nadificada. Você será tal qual o mundo material, contido pelos paradoxos e aporias próprias deste universo fechado e degradante. Não poderá perceber a vida para além dos limites da materialidade e do corpo. O niilismo, nestes termos, é o desejo de desejar o movimento sensível de obtenção de um conhecimento material pela via sensível. A morte se expande conforme a progressividade da impossibilidade de suplantação pela linguagem lógica das aporias e paradoxos da existência sensível. A linguagem tem menos recursos, menos ferramentas que os desafios que ela enfrenta, quando fechada sobre si mesma. Não há dispositivos linguísticos que nos permitam dar conta dos enigmas que enfrentamos, o que nos obriga a reduzir a vida a um conjunto cada vez mais limitado de equações, aumentando, assim, a inadequação da linguagem ao problema e decaindo o vivente em um esquema maquínico. Toda a linguagem, crítica, dialética, hermenêutica, etc., de cunho imanentista e materialista apenas agravam o decaimento, e a degradação.
Importante saliente, neste ponto, que a negação faz parte da ausência de dispositivos no humano que lhe permita conhecer definitivamente, ou, que lhe permite saber que conheceu definitivamente. Assim, o niilismo expande enquanto se passeia pelas ferramentas da linguagem. De maneira similar, a busca de verdades num jardim de escolhas concorrentes, de um pluralismo relativista e sem recursos para dar conta da solução do equacionamento, amplia a desconfiança no modelo e na metodologia. Neste sentido, o niilismo é sacrificial, isto é, produtor de morte: o sacrifício de realiza a cada tentativa de postergar a morte, enquanto de cavam as covas das mortes inevitáveis. Deixemos para outro momento a questão do niilismo, do sacrifício, do sagrado e da morte. Por hora fiquemos com a escolha da humanidade em fechar-se entropicamente num universo fechado e entrópico do imanentismo materialista, isto é, niilismo.
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