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Notas sobre a moralidade e os discípulos de Jesus, amoral.

  • Marcos Nicolini
  • Nov 6, 2021
  • 14 min read


“Todas as coisas me são lícitas,

mas nem todas me convém;

todas as coisas me são lícitas,

mas não deixarei ser conduzido

por nenhuma delas.” (I Cor 6: 12)

Todas as coisas me são lícitas...

...mas nem todas edificam.” (I Cor 10:23)


Estou aqui em uma briga ferrenha com um cara que conheci há anos, mas que me veio fazer uma visita há alguns dias. Devo dizer, tive um contato superficial com ele naquele primeiro momento. Em uma das ocasiões não me acrescentou muito, quando conversamos sobre

“sociedade tecnológica”, seu ponto de vista era excessivamente sociológico e com algum viés ludista. Uma segunda oportunidade de contato com este francês se deu quanto eu estava em uma amizade bem interessante com dois russos (um deles de nome Liev e o outro Ivan), o qual me falavam coisas bem interessantes sobre anarquia e cristianismo. Liev era do tipo “cristianismo radical”, contudo, a meu ver hoje um tanto naïve em suas formulações pacifistas. Ivan era do tipo “anarquista radical” e suas ideias eram violentas e niilistas em excesso. A partir destas ideias dos russos e de conversas com um alemão de nome Martin, meio enviesado e que flertara com certo movimento odioso, odiável, belicoso e violento, fui levado a tentar conhecer aquele francês quando me deparava com outros alemães (Jürgen e Herbert) que conversavam sobre sociedade tecnológica, tecnologia, civilização, etc. De minhas conversas com o francês sobre cristianismo e anarquia pouco me lembro, contudo.


Então, dias atrás voltei a conversar com Jacques Ellul e fui até minhas reservas de amizade e conversas que chamo de biblioteca e saquei dali seu livro “The subversion of Christianity”. O texto dele é fácil de ler (o que é um mérito), mas as ideias requerem alguma reflexão. Reflexão, para mim hoje, significa tomar a fala de um autor de modo significante, contrapor aos meus estoques de conhecimento - aqueles que formam este amalgama de experiências, crenças e saberes próprios e apropriados – e permitir um diálogo tal que algumas ideias próprias ou prevaleçam, ou sejam modificadas, ou ainda abandonadas, ou mesmo configurem um espaço de desconforto, vulnerabilidade e precariedade cognosciva, reconfigurando uma nova rede de experiências, crenças e conhecimentos apropriados ou não acomodável. Este texto de Jacques Ellul tem estes dois pontos fortes: escrita de fácil e estimulante leitura, e ideias que exijam reflexão.


Neste movimento de leitura e reflexão, de avanço no texto e parada, decidi marcar este momento de desconforto. Qual seria o desconforto que requereu esta marca, este marco? Remeto-me ao capítulo IV cujo título é “moralismo” (pg 69: não sei se é coincidência ou se o título e a página coincidiram propositalmente). Ele debaterá a ideia de que o cristianismo contemporâneo traz consigo a ideia de que Revelação é moralidade, que a moral cristão não apenas é superior às demais moralidades, como e pela razão que é Revelação. Revelação para Ellul é o conjunto dos livros que compõem o Velho e o Novo Testamento e que traduziriam (ao dizer traduzir estou colocando uma formulação minha, ele não usa este termo) o relacionamento de Deus com os humanos e a Sua vontade. Para Ellul, no entanto, Revelação e moralidade não tem nada a ver. A Revelação, no Velho Testamento, diz respeito a Deus falando de si mesmo ao humano, da vida e da morte, e da soberania de Deus. Nos Evangelhos Jesus não diria nada sobre moralidade e mesmo Paulo não fala de moralidade mas de práticas efetivas para as comunidade de seu tempo. Não haveria um sistema moral nos Evangelhos, pelo contrário, “the revelation of God in Jesus Christ is against morality.” (Pg. 70). Não haveria como obter um sistema moral dos Evangelhos e das epístolas paulinas, antes, a chave destes escritos é contra toda moralidade. Jesus não se contrapõe apenas aos moralistas, mas visa destruir a moral.


Os ataques de Jesus aos fariseus se deram por que tais eram os homens com a moral mais elevada dentre os humanos, vivendo vidas perfeitas em virtuosidade e obediência. Eles colocaram a moral deles em substituição à Palavra de Deus, a qual não pode ser expressa em mandamentos rígidos. Jesus frequentemente ataca os preceitos e regras morais, demonstrando o que significa ser uma pessoa livre sem moralidade, obedecendo apenas a sempre nova Palavra de Deus que resplandece. Então, surge no texto a ideia de liberdade atrelada a não sujeição aos preceitos e regras morais, certa amoralidade. Uma pessoa livre não se deixa constranger pelos limites do moral. Ellul nos lembra que Paulo nos disse que “todas as coisas me são lícitas...”. Lícito éaquilo que é permitido, então, tendo permissão para tudo, a lei a nada proíbe ou constrange, estou livre da própria lei, não há lei. Mas, dirá Ellul, liberdade não significa fazer tudo, mas é a liberdade do amor, o qual não se deixa categorizar, ser analisada por princípios e mandamentos. Os relacionamentos não se dão por dever, mas por amor. Então, cheguei até o ponto onde Ellul diz: Revelação é um ataque a toda moralidade (pg.71).


Alguns pensarão que minha discordância para com Ellul se dá pelo fato que não concordaria em desassociar Revelação e moralidade, isto é, que defenderia certa moralidade no cristianismo como resultado direto da Revelação. Não! Meu problema com Ellul não se dá aí. Não entendo que Revelação é moralidade, pelo contrário, a Palavra de Deus para os humanos não se coloca como uma moral, pelo contrário. Entendo que Deus é amoral, certamente, e que sua Revelação é amoral. A vontade de Deus expressa na Revelação, nos Evangelhos e nos demais escritos não compõem um código moral. Qual meu problema com Ellul, nestas três breves páginas que gastei quase duas horas para lê-las?


Para explicar aqui o que me desconfortou nestas páginas preciso reportar-me a duas outras leituras. Uma delas é a Walter Benjamin (não me lembro qual dos textos especificamente). Em algum lugar diz que há dois tipos de violência: a divina/sagrada e a violência desprovida de sentido. Ele estaria dizendo da violência revolucionária, portanto, que traz sentido e dessa maneira, legitimada em sua aplicação, e a violência não revolucionária, antirrevolucionária, etc., injustificável. O que me importa aqui é esta aparência de mesma coisa, mas que significa sinais incomensuráveis. Outra leitura que me importa é a de Franca D’Agostini, “mentira”, na qual a autora faz distinção entre verdade, mentira, engano, etc. Para ela a verdade é uma só, mas a não-verdade é múltipla. A não-verdade em algum momento de seu texto se apresenta como pre-mentira e esta se desenvolve em três etapas lógicas, o que eu chamaria de sofismática, a saber: (a) uma verdade inconteste, (b) um momento híbrido de verdade-mentira/engano e (c) um último de mentira/engano. O que difere a mentira do engano é que a primeira é dolosa, tem a intenção de causar um dano ao que acredita que a mentira é verdadeira, portanto, o mentiroso sabe que aquilo que ele quer fazer ser tomado como verdade não o é e ele levará vantagem e o outro será lesado; o engano não tem esta correspondência com o dolo.


Para exemplificarmos diria: (a) Revelação não é moralidade, (b) por serem humanos morais Jesus atacou os fariseus em seus códigos morais, (c) Jesus foi contra toda moral.


Este é um bom resumo destas três páginas resumidas acima. Devo então dizer que concordo plenamente com o item (a): Revelação não é moralidade; discordo parcialmente do item (b): por serem humanos morais Jesus atacou os fariseus e seus códigos morais e; discordo totalmente de (c): Jesus foi contra toda moral, isto é, para mim, dizer que Jesus foi imoral, além de amoral.


Para que eu possa explicar o que dissemos logo acima devo antes elucidar o que para mim é moral. Comecemos pelo que não é moral: moral não é definida sexualmente, não é um código de conduta sexual; moral não é um código abstrato, atemporal e não contextual, que regula as condutas a partir do conhecimento pleno do bem e do mal, determinando que sua observância nos faz aceitáveis diante de Deus e que a inobservância nos coloca conta a vontade de Deus. A moral vem de mores, em latim, e nos fala sobre forma de conduta relacional entre indivíduos pertencentes a um mesmo grupo. A moral se torna código de conduta quando se estabiliza. A moral é produto das relações entre indivíduos de um mesmo grupo em um espaço de tempo tal que consolide tais códigos. A moral é conduta socialmente aceitável que diz respeito aos comportamentos entre indivíduos de um grupo. A moral diz que quando uma pessoa idosa entra num recinto e eu estou sentado, devo lhe conceder o acento; a moral me diz (no Brasil) que em uma refeição não devo mastigar de boca aberta em nem arrotar; a moral me diz que se uma mulher, vestida com uma minissaia e camisa decotada passar por mim é errado qualifica-la pejorativamente; etc. A moral, como código de conduta coletivo construído por um grupo é similar ao decoro, que é o código de conduta de um indivíduo diante de uma instituição, por exemplo, quando estamos diante de um juiz numa audiência legal, diante de um sacerdote num lugar sagrado, em um laboratório diante de cientistas, etc. A moral diz respeito aos códigos de condutas produzidos por um grupo (espaço e tempo) e se modifica à medida que o grupo modifica seus modos e valores. Assim, a moral não é meio de salvação.


Assim como cremos, os cristãos, que a salvação não vem de obras, mas é graça e havemos de crer nela apenas, contudo, as ações acompanham os que creem na graça salvadora em Jesus Cristo. Também a moral é obra, é um produto prático da ação humana no mundo, visando uma vida em comunidade. No caso, a ação que visa um estar e viver em grupo, sabendo que o humano é um animal relacional e reflexivo, consciente de si e de que seu mundo é produto de seu estar e agir. Deus não Revela uma moral e a Revelação não é moral, não produz salvação, pois a moral é resultado não da lei eterna, atemporal e incorruptível de Deus, mas da produção reflexiva e consciente dos grupos humanos (préssocietários, inclusive). Muito menos devemos dizer que a Revelação é uma moral fundada em códigos sexuais, em sexualidade. A Revelação nada tem a ver com sexo e sexualidades. Sexo e sexualidades tem a ver com regras produzidas pelos grupos sociais em determinado tempo.


Contudo Jesus de fato atacou os fariseus e seus códigos morais. Por que, penso eu, Jesus atacou os fariseus e seus códigos morais? Atacou os códigos morais pois Jesus seria alguém que se oporia a todo e qualquer código moral? Não! Jesus, a meu ver não atacou os códigos morais em si, a existência de códigos morais, como mores, como regras de condutas que regulam formas de relacionamentos aceitáveis no interior de um grupo no afã de, com o propósito de estabelecer meios aceitáveis de condutas entre indivíduos. Jesus, penso eu, não atacou a existência de códigos e preceitos morais, mas, em primeiro lugar, atacou a crença que códigos morais são idênticos à Revelação, portanto, que realizaria a salvação, ou vontade de Deus entre os homens. Códigos morais não são Revelação e não realizam a vontade de Deus, não trazem à realidade a vontade de Deus para os humanos promovendo a salvação. Em segundo lugar, não sendo Revelação, os códigos morais são produtos das interações entre humanos, no entanto, os fariseus fazendo crer que os códigos morais são revelados, mentiriam ao ocultar o fato que são apenas valores de um grupo que quer se impor, dominar outros grupos por meio da ascese do corpo. Qual a mentira que introduziram os fariseus? Que os códigos morais sendo Revelação e que eles agindo segundo a vontade revelada de Deus, eles seriam homens superiores, mais próximos de Deus, portanto não apenas deveriam ser imitados, como admirados, respeitados e tidos como verdadeiros, assim, todos deveriam estar, a eles, submetidos. O que Jesus estaria dizendo é: esta moral, este código de conduta, estas prescrições sociais foram inventadas por vocês e impostas como Revelação (vocês mentem como vosso pai, que é o pai de toda mentira), contudo nem vocês mesmos conseguem viver segundo estas normas, mas querem que os demais vivem submetidos a elas. O problema de Jesus com os fariseus e sua moral era que eles mentiam dizendo que a moral é Revelação e não produto da ação humana e que a intenção desta confusão entre moral e Revelação era dominar os demais apregoando-se como uma humanidade superior, mais excelente, estabelecendo uma aristocracia (poder dos melhores) moral.


Assim, Jesus não teria atacado a moral per si visando uma humanidade amoral, mas atacara a mentira de uma moral identificada como Revelação e uma casta de homens que estariam vivendo plenamente segundo este código e preceitos, sendo consideráveis perfeitos e aproximados de Deus, uma vez que conhecem e realizam plenamente a vontade de Deus. Poderiam apenas estar enganados se acreditassem neste conhecimento pleno e neste fazer identificado com o conhecimento, mas foram ainda mais longe e se colocaram como casta superior que tinham o direito moral de dominar sobre os sub-humanos com suas condutas imorais ou sub-morais. A mentira não está na existência de uma moral, seja qual for; nem tampouco em identificar a Revelação e moral, pois isto pode ser apenas um engano. A mentira está em ter uma moral privada (aceita por um grupo) que é identificada como Revelação e que deve produzir uma casta aristocrática que detém o direito moral de dominar sobre os demais sub-humanos.


Assim, poderíamos dizer que a moral é uma consequência do viver e agir humano na medida de sua existência comunitária, indispensável e impensável nas relações grupais, contudo resultado do agir e do pensar reflexivos, definida no interior do grupo e válida enquanto responde a desafios espaço-temporais que faceiam o grupo, não sendo algo dado por meio de uma Revelação de Deus à humanidade.


Enquanto Ellul diz que Revelação não é moral e que Jesus se opôs a toda moral, eu penso que o nexo entre Revelação e moralidade estão desfeitos em Jesus e Paulo (concordando com Ellul), mas que a moral é indispensável em qualquer relação entre indivíduos humanos que estão aproximados comunitariamente, assim como em sociedades complexas precisamos de decoro para estabelecer relações entre indivíduos e instituições formais. Se, entendo eu, é imprescindível a moral e os cristãos vivendo em comunidades cristãs precisam de mores, de códigos de condutas e preceitos que rejam os relacionamentos aceitáveis entre indivíduos no interior do grupo e entre os grupos cristãos e os não cristãos, o que diferenciaria a moral cristã das demais. Diria eu: a Revelação.


Mas, se a Revelação não é moral, poderia ser o caso da moral cristã ser revelada? De forma alguma. A moral, cristã ou não, não é Revelação e a Revelação não é moralidade. Lembremos, a moral é um código não escrito que estabelece a conduta aceitável no interior de um grupo. A moral cristã é um código de conduta cujo fundamento tácito é necessário, intraduzível e amoral. A moral cristã repousa sobre um fundamento amoral, que não é moral, mas Revelado. Todo o cristianismo se funda na transcendência. O que Ellul está fazendo é se deixar enganar ao confundir amoralidade, ou a transcendência radical do fundamento da moral, com a imoralidade, a ausência de moral.


Num dos parágrafos destas três páginas resumidas por mim, Ellul nos fala sobre o Gênesis e o “pecado original”, dizendo que o erro humano não é o conhecimento (com o que concordo), mas o conhecimento do bem e do mal (com o que não concordo). Mais adiante do Gênesis lemos que Deus diz, “o humano é igual a nós, conhecedores do bem e do mal.” Ou Deus é pecador como nós humanos, que conhecemos o bem e o mal, ou o problema não é de conhecimento do bem e do mal, mas de método.


Continuando com Ellul, diz que no contexto do Gênesis o conhecimento significa decisão. Assim, pecar é decidir o que é bom ou mal sem se reportar a Deus, sabendo que o bom é a vontade de Deus. Penso eu que o “pecado original” é decidir conhecer o bem e o mal a partir de uma redução, de uma queda original (nos dois sentidos do termo: inicial e criativa), de uma degradação, degeneração, a saber: reduzida ao imanente, aos afetos materiais. Restringir a vida e a existência ao “viu que a árvore era boa de se comer, e agradável aos olhos e para dar entendimento”, entendimento a partir dos afetos ao corpo apenas. O pecado original está no método de se conhecer, que limita o conhecimento ao que é bom para os afetos do corpo e não uma abertura para o transcendente. É uma redução da humanidade a seu corpo material, temporal e corruptível, abandonando suas fontes e fundamentos: Deus.


Confundir amoralidade de Deus, como imoralidade de condutas humanas é um erro de método, um pecado original. O imoral diz: Deus é livre, portanto faz o que deseja, eu sou livre para agir imoralmente quando me volto para a Revelação. Cai no mesmo erro: confundir-se com Deus, quer seja no caso ascético de uma moralidade que se quer perfeita e salvadora, quer no caso de uma imoralidade libertária que rompe com a possibilidade de vida comunitária. O imoral tanto é o que faz de seu corpo, o que lhe resta, o que quer, quanto abandona, rejeita e contrapõe-se aos relacionamentos de si com os demais. Em ambos os casos o que se coloca é a imanência radical: quer pela crença no aperfeiçoamento pelo subjugar o corpo ao ideal acético, quer pela crença na ausência de qualquer regra ou código de conduta me seja possível no regramento das relações entre indivíduos no interior de grupos abrindo espaço para toda forma de conduta. Em ambos os casos é a imanência radical: de um lado a crença que o corpo pode ser dominado e de outro que não há regras a submeter o corpo que se torna livre. Ambos são niilismos.


Assim, há uma moralidade a ser produzida no interior dos grupos humanos, que estabelecerão regras de condutas aceitáveis nos relacionamentos entre indivíduos do grupo e entre grupos. Regras tácitas. O que difere o cristianismo é o fundamento amoral para a moral, isto é, o fundamento transcendente destas regras imanentes. A moral é requisitada por ser um imperativo da vida humana em coletividade, em grupo, em comunidade, seja lá o nome que se dê a este viver que vai além do indivíduo e sua crenças e valores que se quer privado, íntimo. Então, devemos nos perguntar que fundamento transcendente é este que tanto é amoral, quanto é fundamental para nós.


Podemos nos voltar a Paulo, para a parte do escrito paulino que Ellul esqueceu-se de citar: todas as coisas são permissíveis, mas nem todas edificam...nem todas convém... não me deixarei levar por elas. Não se deixar levas pela imanência, nos dois sentidos, quer pela crença de que submetendo meu corpo à regras rígidas e superiores serei como Deus, ou pela crença que por não lograr êxito neste exercício sórdido e inútil de auto-flagelo devo abandonar também a crença na moral. Remanesce um certo pragmatismo, uma conveniência de produzir uma certa moral, é a conveniência da vida em grupo, comunidade, sociedade, etc. Posso fazer o que eu quiser com meu corpo, com minha existência, mas isto não é conveniente pois vivo em sociedade, em comunidade, em grupo e tal “fazer tudo e qualquer coisa é prejudicial para mim e para os demais”, não convém. Assim como não convém, também não edifica.


Falando em obras e edifícios, lembramos que o mesmo Paulo nos fala que cada um de nós edifica segundo certo fundamento. Não importa muito o edifício e seu uso, seu destino. O que importa é seu fundamento. O que importa é o fundamento amoral da moral, aquilo a partir do qual se edifica. Posso fazer qualquer coisa, moral e imoral, ascético ou libertino, mas o que importa é o fundamento deste fazer. Se deixamo-nos fazer pela imanência de códigos que submetem e dominam o corpo crendo falsamente ou mentindo sobre a tese da Revelação, ou se nos deixamo desfazer pela imanência niilista de ausência de regras e condutas que norteiam nossa conduta entre iguais, mentindo ou nos enganando sobre a existência nadificada, não importa, tudo é nada. Uma hiper-moralidade que se funda na crença de um corpo sujeito dominado, ou numa imoralidade que se funda numa crença no nada como destino são, em Jesus e Paulo a mesma mentira.


O que Jesus nos dirá? O meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros. Há um fundamento amoral, indizível, inapreensível, atemporal, que pode e deve suportar nossas relações recíprocas e acolher as diferenças e diversidades a partir de uma horizontalidade radical: acolhimento amoroso. Por ser tratar de transcendência, pouco ou nada podemos, ou poderemos dizer a respeito. O que podemos fazer é tornar sempre nova e revificado o sentido do caminhar e da experiência. Neste ponto Ellul e eu voltamos a concordar: a moralidade farisaica que contempla os corpos como lugar privilegiado e que nos conduz a Deus quando e se o submetermos a códigos rígidos, positivos e ascéticos não são identificados como Revelação. Nos distanciamos quando confunde amoralidade como imoralidade, a transcendência do fundamento da moral em algo que não é moral, mas amor, justiça, graça, etc., com a imanência de um niilismo radical que não encontra nenhum código possível e que tudo é força do mais forte, potência e violência.


Em Cristo o amor, a graça, a justiça são/é o fundamento transcendente e amoral sobre o qual devemos fundamentar a imanência de uma produção de moral que nunca encontra estabilidade, ainda que componha o repertório de condutas aceitáveis, pois não apenas aceitamos viver juntos, haveremos de amar uma vida justa e boa.

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