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O assassino de Deus

  • Marcos Nicolini
  • Oct 3, 2021
  • 14 min read

Por algum motivo retomei minha leitura do texto de Gabriel Liiceanu, “do ódio” (para quem desejar vai a dica: Vide Editorial, 2014). De fato sei o motivo, mas aqui é irrelevante. O que importa é que ao iniciar a releitura me deparei com algo que havia esquecido: sua dupla leitura de um assassinato. De um lado o assassinato de Abel realizado por Caim, de outro o assassinato dos “burgueses” (na URSS chamados de kulaks, ou seja, os pequenos

rurais no interior daquela república soviética emergente, entendidos pelos revolucionários como burgueses, ou, proprietários dos meios de produção), realizado pelos marxistas-leninistas-comunistas (assim como fora o assassinato dos judeus pelos nazistas, em quantidade similar, mas com legitimação e métodos diferentes). Desta leitura me lembrei o motivo de ter lido Julian Benda e seu texto seminal, “a traição dos clercs” (mais adiante retornamos ao tema do clericato e do laicato e as narrativas de justificação e legitimação da violência extremas, diríamos, satânica) e depois Raymond Aron, sobre o mesmo tema: a falácia marxista e a traição dos intelectuais.


Ao reabrir o texto de Liiceanu me deparei com um duplo assassinato, como disse antes. O assassinato de Abel por Caim e o assassinato dos burgueses pelos progressistas e percebi a atualidade e urgência do tema numa sociedade da reprodutividade técnica e a obliteração sistemática do clero.


Liiceanu parte da leitura do Gênesis, quando Deus diz: “façamos aadaam (אָדָם, aquele que vem da terra) à nossa imagem e semelhança”. Deus faz o humano com a semelhança de Deus, isto é, com a sua face. Aquele que é terreno, mas que também traz a face do divino. Olhar o outro é olhar o próprio Deus na substância material.


Neste ponto me lembrei que certa vez fui convidado por meu amigo Carlos Bregantim para falar à igreja que se reúne sob o convite amoroso deste meu querido. Minha fala lá foi sobre a epístola de Paulo à ekklesia (a congregação, a comunidade, os que conversam sobre o reino e o Senhor visto na terra como é no além céu) em Corinto, quando diz: “e nós como que contemplando por espelho vemos a face de Cristo de doxa em doxa (doxa que em grego nos fala sobre a opinião, quer dizer, qual opinião as pessoas tem sobre algo, o que pensam sobre algo, mais especificamente, a reputação social de alguém ou de algum assunto, é assim que a entendo, embora seja traduzido por glória, algo grandioso, eloquente, magnífico). Conectei este texto com o de Isaias que diz: “Era desprezado e o mais indigno entre os homens, homem de dores, experimentado nos trabalhos e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum.”(Isaias 53) A face de Cristo é a face do feio, do repugnante, do desprezível, daquele que não queremos ver como humano digno, glorificável...O Cristo que está junto ao Pai é à semelhança do humano que está na Terra. Tal face de Cristo não a vemos como o Pankrator (Pankrator, o Senhor de Tudo, o Todo Poderoso) dos Ortodoxos ou dos Medievais, dos Templos de Salomão; massa a vemos na face dos vulneráveis, dos desprezados, dos que estão moribundos ao largo do caminho, os que sofrem as dores dos assassinados, a face do homem assassinado pela cidade, fora e seus muros, entre os que de fato cometeram crimes e são violentamente julgados e mortos. Não sei se fui entendido ao falar diante de num mundo onde o belo, o espetacular, o grandioso, o suntuoso, o apreciável é o consumível, é o que deixamos ver. Onde precisamos de um lindo Jesus para acalentar nosso desejo e esconder nossa miséria, ainda que o que podemos ver é um homem entre miseráveis. Entendo que não soube expressar veementemente o que meus olhos míopes estavam a ver.


Mas, destacamos, precisamos entender o que é o feio, o desprezível, o grotesco que aqui nos referimos, para que não caiamos na tentação de elegermos pseudos-cristos (quem sou eu para dar este passo impossível?). Para isto devemos nos afastar de meu momento de repartição comunitária e retornar ao retorno à leitura de Liiceanu e depois irmos um pouco mais adiante dele. O melhor que temos a fazer é irmos de doxa em doxa, de opinião em opinião, de ponto de vista em ponto de vista, de avistamento em avistamento, de metáfora em metáfora, de busca em busca.


Deus fez o humano, homem e mulher, à sua imagem e semelhança, assim como Deus, em Cristo Jesus, se fez assemelhado ao humano para que o víssemos. Não vou aqui dizer o que penso deste fazer verdadeiro de Deus, mas tão somente retomar à leitura, à doxa de Liiceanu. Diz ele que Deus fez o humano (homem e mulher) para que um e outro (o humano com o humano) ao olharem a face do outro vissem a face de Deus. Ao olhá-lo veria, como que por espelho, a face de Deus. Contemplaria a Deus ao encontrar-se diante do outro. O espelho de Narciso se quebraria e estaríamos para longe da tragédia, vendo o outro e desde o próprio Deus. O drama da humanidade encontraria uma porta de passagem para o encontro para fora das marcas rígidas do palco onde atuamos sem que percebamos o escape. A tragédia de Narciso se rompe em prol de um drama com uma porta de passagem que é o espelho de Cristo.


Desta maneira, seguindo o mais perto que consigo a Liiceanu, quando Caim assassina Abel ele, de fato, mata a face de Deus expressa na face do outro. Deus não pode mais ser visto pelo homem diretamente, como podemos constatar no diálogo entre Moisés e YHWH, que lhe diz expressamente sobre esta impossibilidade. O assassinato original não se refere apenas ao assassinato de um irmão pelo outro, mas o assassinar a face de Deus que poderíamos ter acesso em nossa co-presença. O homem encontrar-se-ia diante da morte de Deus, um tema tão atual para os niilistas do século XXI. Melhor dizendo, o humano encontra-se diante da morte e é a morte que é o traço do humano após Caim. Penso que é neste sentido que ao olharmos o espelho, aquele que Paulo nos insta ver, procuramos, como cristãos narcisistas, encontrar o Cristo Pankrator, o Jesus lindo que é modelo estético de uma era (hora ele tem a pele branca e olhos claros, hora é o transexual que desfila na avenida, mas sempre é o espelho do belo, do aprazível, do desejado: o desejo do homem de encontra-se como Deus, no lugar de Deus). Quando Caim assassina Abel, sem remorso, ele assassina a face de Deus que não mais verá, resta-lhe o espelho de si mesmo idealizado: o homem-Deus. A morte de Deus não se dá no século XIX com Herder e Nietzsche, mas preanunciada em Caim.


Um parêntesis. Entre leituras tantas, encontrei-me diante de uma sugerida por Ernst Cassirer (Ensaios sobre o homem, Martins Fontes, pg. 144) de Robertson-Smith, quando diz: “do totemismo em diante, encontram explicação suficiente na afinidade física que une os membros humanos e sobre-humanos da mesma comunidade religiosa e social...O laço indissolúvel que une os homens ao seu deus é o mesmo laço de irmandade de sangue que na sociedade primitiva é o primeiro elo de união entre o homem e o homem, o primeiro princípio sagrado de obrigação moral.” A comunidade do humano com o divino e a comunidade do humano com o humano estão imbricadas mutuamente, enquanto a ruptura, o assassinato do irmão, desfaz ambos os elos concomitantemente. Olhar o assassinato é retomar o olhar sobre a possibilidade de reencontro, a esperança da ressurreição. Fechando parêntesis.


Contudo, dirá Liiceanu, aquela é a morte de um homem por um homem. A morte de um humano por um humano traz consigo a inauguração da impossibilidade de se ver a Deus na terra, como substância material, no Seu esplendor. Como sugerimos, é aí que a feiura se coloca como espaço do possível no encontro com a face de Deus. O lindo Cristo, antes de ser o encontro com Deus, pode se apresentar diante de nós como a figura putrefata de uma humanidade em decomposição, a qual procura, inutilmente, apagar esta degenerescência com a cosmética (traduzimos Kosmos por mundo, e de cosmos vem cosmética, o que nos permitiria dizer que mundo é esta aparência embelezada e sedutora que oblitera sua possível degradação como morte). O lindo Cristo como um defunto, ainda que não o seja tal, que jaz à beira do caminho, assassinado por Caim, isto é, pelo fazer político. Talvez tenhamos que olhar de frente o corpo em decomposição produzido por Caim e não virar o rosto, não nos negarmos a atentar para o que jaz no caminho.


Liiceanu parece se esquecer, ademais, que Caim foi o fundador das primeiras cidades. O assassino primordial é também o fundador de cidades, o que aproximaria à violência primordial, o assassinato às cidades, à política. Não devemos nos esquecer que na mitologia romana também o assassinato primordial funda Roma. Rêmulo assassina Remo e funda a Cidade de Roma regada pelo sangue do irmão. Não apenas isto, se não bastasse a relação estreita da Política coma violência extrema, como também o fato que o progenitor destes gêmeos era Marte, o deus da guerra. Tanto no texto bíblico, quanto na poesia de Virgílio, a Cidade antiga tem como fundamento a morte do outro e o sangue como sementeira. O que diferencia, no entanto, é que no texto bíblico o assassinato não tem o patrocínio e anuência de Deus, antes, seu desabono, enquanto que na Urbis romana o fundamento é Marte, isto é, a guerra como elemento fundamental. A Cidade é o espaço em que a possibilidade de se ver a face de Deus é sacrificada. O sacrifício é o fundamento do poder cósmico, aquilo que funda a cidade, desvia o olhar para a tragédia e impõe um funcionamento a partir do ódio e do medo extremo (vide O Leviatã de Hobbes, não antes de ver na Grécia tanto os assassinatos sistemáticos de Kronós, como o sacrifício arquétipo que Prometeus realizou para aplacar a ira dos deuses e fundar a Polis). A instauração de novas ordens políticas, que chamamos de revolução, são inauguradas com guilhotinas e paredões de fuzilamento: a eliminação da alteridade, da face de Deus, de maneira produtiva, contínua e sistemática, ainda mais, legitimada.


Assim podemos passar ao segundo tipo de assassinos, aqueles que encontram suas condições de possibilidade na modernidade. É neste ponto que Julien Benda entra no circuito, isto é, no curto-circuito da modernidade e seus traidores. Benda escreverá o texto seminal com o título a traição dos clercs (intelectuais). Como bem explica Liiceanu, clerc é a palavra francesa que translitera a palavra grega κληρος (cleros). Κληρος em grego aponta para aqueles homens que possuíam bens, deixavam herança, contrapondo-se aos λᾱϊκός(laicos), o povo sem propriedade. Na Idade Média o clero passou a ser aquele grupo que possuía a herança espiritual, os homens de letras, talvez (devo ainda buscar satisfazer esta minha ignorância e intuição), os que herdaram a terra ao se apegarem ao Logos (conforme uma possível leitura que ousaram fazer das palavras de Jesus Cristo: “bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra”). Com a modernidade e o Iluminismo, o clero religioso foi substituído por um novo clerc, os intelectuais, os quais reivindicaram a herança do saber verdadeiro, aquele que substituiria o obscurantismo da religião, o falso saber tributário à fé: o sacrifício da Razão.


Esta tomada de herança, esta passagem da propriedade do sagrado para o profano se deu com a adoção posterior do nome de secularização, não se deu sem que o adubo do sangue não fosse vertido abundantemente, sob a alcunha de Revolução, especificamente, a francesa, com o uso de guilhotina. Lembramos que o cristianismo se inicia, efetivamente, com sangue: primeiramente o de Jesus Cristo na cruz e posteriormente com o sangue de Estevão, cuja semente brota em Saulo, que viria se chamar de Paulo. O cristianismo é martírico, como eco das palavras de Jesus em Atos dos Apóstolos: “por que vocês ficam olhando para o alto (contemplação teórica)? Ide e pregai o evangelho...vocês serão meus μάρτυς (ou μάρτυρος, de onde vem a nossa palavra mártir, mas que aqui o tradutor preferiu utilizar a palavra testemunha. Esta palavra se contrapõe ao conceito de teoria, contemplação, do olhar que busca as verdades eternas, enquanto testemunha/μάρτυς aponta para a experiência, para a vivência, para o ser-aí). As palavras de Jesus propõem um movimento epistemológico que abandona a relação que implica numa potência no humano em ver a verdade por si, para uma vida comprometida com a experiência de ser em face às circunstâncias, sem se deixar levar por um hedonismo ou um pragmatismo imediatista e vulgar.


A questão é que o cristianismo se inicia com o martírio, o sangue vertido dos que creem nas boas-novas. O cristianismo entende que não é algoz e agente da violência, mas que a espada será levantada contra ele, como um eco das palavras de Jesus: não penseis que vim trazer paz, mas espada. Não é Cristo quem fomenta o uso da espada contra seus oponentes, mas são os Cains, Rêmulos e Prometeus que se lançam contra os que, em nome do perdão e do amor, colocam em risco a Cidade. Jesus não está instando o uso da violência, mas profetizando a violência contra e sobre seus discípulos, alertando-os contra um fato futuro. Fato oposto ocorre com a Revolução, pois ela se alimenta do ódio e do sangue dos seus inimigos. As Revoluções são efetivadas, realizadas como uma utopia que se torna fato, portanto, como violência extrema contra aqueles que ela entende que são seus inimigos. As Revoluções são momentos de assassinato em série e sem medida e fim. O fim da violência revolucionária se dá quando ela mata o último revolucionário, se possível como suicídio com tiro na cabeça. As Revoluções são geradas nas Utopias e se realizam como Distopias.


No entanto, os atos devem ser acompanhados de narrativas legitimadoras. Neste momento, dando suporte à violência desmedida entra na cena trágica os clercs, os intelectuais. Como nos fala Walter Benjamin, há dois momentos revolucionários: aquele da tomada do poder e aquele da manutenção e ampliação do poder. Podemos entender que a tomada de poder requer intelectuais que produzam utopias até a legitimação e justificação do uso da violência sem medida, enquanto a manutenção e ampliação do poder requer outro tipo de intelectual, aquele que legitime e justifique a violência cotidiana e a mentira como Razão de Estado: o medo e o terror como constituinte do poder revolucionário e a mentira como cultura. Claro que Walter Benjamin também será solidário à produção da traição, pois ele advoga a existência de dois tipos de violência: uma é a violência (que chamaremos de) profana, aquela realizada pelos nossos inimigos; outra é a violência sagrada, legitimada pela história e pela finalidade utópica que traz consigo, esta é a violência que nós haveremos de realizar. É este tipo de discurso cínico, hipócrita e falacioso que Benda está a denunciar e que é produzido pelos intelectuais que se projetam no poder e nele desejam se consagrar. A produção sistemática destas narrativas políticas que contrapõe o profano ao sagrado, o nefasto ao justo, o aviltoso ao legítimo, o bárbaro ao culto, o burro ao moral já é uma antevisão da produção de uma sub-humanidade e uma pós-humanidade, aquela que eliminou os elementos perniciosos e doentios por meio de uma imunização comunitária. Enquanto a sub-humanidade é a que se negou a diluir-se na História, antes, opôs-se a ela.


É neste sentido, então, que não importa se a violência é feita por fascistas-nazistas ou marxistas-comunistas. O que importa é quem escreverá o último livro sobre a Guerra Justa: “nós escrevemos a história, portanto, eles deveriam ser extirpados do espaço público e político, pois não são humanos”. A desumanização do outro é o elemento fundamental da Revolução e esta desumanização é produzida pela caneta e a eliminação da alteridade requer a baioneta, ou, como nos diz Liiceanu, quiçá a enxada (instrumento de produção). Neste sentido que Caim é chave de acesso ao entendimento da violência política (e, deixando-nos levar pela instigação de Liiceanu, da violência econômica), mas, ao ser um assassinato de um homem por um homem, não explica o assassinato moderno, isto é, sistêmico, repetitivo à exaustão.


Precisamos lembrar de dois movimentos que ocorrem no interior da modernidade: primeiro aquele que aponta Hanna Arendt que se traduz no termo “banalidade do mal”, isto é, realizar o mal como um ato instrumental, sem remorso, mas entendendo que está respondendo a uma demanda do tempo futuro que se projeta no tempo presente. Realiza-se o assassinato da face de Deus no rosto do outro como um dever demandado por esta violência sagrada (sou eu quem está misturando Arendt, Benjamin e Liiceanu). É um Che Guevara que puxa o gatilho que faz explodir uma bala na cabeça de um homossexual, sob a justificativa de que eliminou mais um burguês, e desta forma, inscreve-se na História: a liberdade do revolucionário está em dizer sim à História e diluir-se nela. Mas a questão da “banalidade do mal” nomeia algo que não pode ser explicada apenas em dizer: “cumprimos nosso dever com a História!” Entendo que a “banalidade do mal” deva ser entendida a partir do movimento de abstração crescente e universalizado que se coloca em ação na Modernidade.


Abstrair aqui tem o sentido de desconectar-se com o real e fundar uma lógica auto-regulatória e auto-justificada. O que Deleuze e Guattari chamaram de rizoma, istoé, algo que não se enraíza no real, mas se sustenta por uma lógica interna auto-fundante. A “banalidade do mal” se funda na abstração da humanidade e se detém apenas na lógica interna do sistema de pensamento que justifica a eliminação do outro por ser sub-humano. A Modernidade tentou em vão encontrar um fundamento metafísico para eliminar Deus (o assassinato de Deus, a eliminação da face de Deus) culminando no projeto de eliminação da metafísica, no movimento que chamamos de pós-modernidade. Os discursos são legitimados pelo poder hegemônico e justificados por uma coerência interna. Não queremos aqui nos alongar nestas questões, mas apontar para o fato que a “banalidade do mal” já estava presente na abstração revolucionária da França de 1789, quando o clero religioso foi assassinado sistematicamente pelo fato de significar um regime obscurantista e compromissado com o Antigo. A Revolução Francesa de 1789 abstraiu da humanidade e assassinou a alteridade: eliminou a face de Deus. O prenúncio do assassinato da alteridade com a concomitante morte de Deus se faz em Caim, se realiza na Revolução e se justifica em Nietzsche. O que sobra é o eterno retorno do mesmo, a reprodutividade maquínica: a banalidade do mal como abstração violenta em era de sua reprodutividade técnica.


O segundo movimento é o técnico-científico que crescentemente submete toda a vida à quantificação e à calculabilidade, subsume tudo ao dado informacional e às relações que traduzem trocas de informações, e busca leis universais e necessárias que expliquem e predigam comportamentos sob a alcunha do controle individual que se normatiza como geral. Dentro deste segundo movimento já está presente, imbricado mutuamente o primeiro movimento, de abstração como “banalidade do mal”. O cientificismo moderno abstrairá dos indivíduos como valores em si e os submeterá a fatos quantitativos, calculáveis, formalizáveis, controláveis. A vida não será este misterioso dom divino, pois a face de Deus já foi expurgada da terra pelo assassinato da alteridade, eliminada pela Revolução Científica com única razão possível. A vida será esta troca de informações passíveis de controle algoritmizado. A vida deixou de ser um valor, pois, passou a ter quantidade, expressa apenas por seu numero, de troca mercantil ou de cálculo de poder político.


Há de se perceber que de um lado a ciência produz leis universais e necessárias, isto é, que abstraída do espaço e do tempo estas leis se aplicam sempre e em todo lugar, obtendo os mesmos efeitos. Estas aplicações dependem das técnicas, as quais dizem respeito à otimização dos controles e predições, reproduzindo, assim, tais aplicações a fim de obter o máximo resultado. Os fornos nazistas e as colônias de reeducação na URSS e China foram testes de laboratório de um uso genérico e amplo de modelos de engenharia comportamental, tornado possível desde quando se abstraiu da vida como valor, tornando-se apenas fluxo de informação tendo em vista a otimização de resultados e de disponibilização de recursos. A questão central destes dois modelos experimentais da engenharia comportamental não está na produção de mortos, mas na eliminação do afeto, da banalização do horror, da ausência não absurda do reconhecimento da face do outro como um valor em si, desde a universalização da morte de Deus na sociedade, a qual se deixa calar diante da desmesura da violência. Consequentemente, adveio uma sociedade que produz, em nome da “minha vida”, a mentira como cultura.


A mentira como cultura é a face do horror colocado nas relações cotidianas. Os agentes de violência não são os agentes de Estado, mas as pessoas íntimas, como um eco das palavras de Jesus: porei inimizade entre pai e filho, entre mãe e filha, etc. Há de se simular reações esperadas, comportamentos sociais aceitáveis, a fim de não cair nas malhas da violência. O Politicamente Correto é um dispositivo de controle social, de comportamentos e adestramentos que sinaliza o horror dos regimes extremos. O silêncio e a simulação tomam espaço num mundo, numa cosmética da violência operante como malha, para usar uma terminologia foucaultiana, numa microfísica da engenharia comportamental. O Politicamente Correto é esta malha tecno-científica de controle de comportamentos pelo tempo em que dispositivos mais eficazes ainda não estão em funcionamento.


Assim como a violência sagrada tanto poderia ser operada em favor de nazistas quanto de marxistas, também a banalidade técno-científica se apresenta em sua neutralidade, podendo ser utilizada por poderes econômicos e por poderes políticos, indistintamente, para o mesmo fim: controlar comportamentos por meio de informações raptadas dos controlados. O rapto das informações é outro assunto e deixaremos para outro momento. Por hora nos interessa esta violência original que reduz a vida a um fluxo quantitativo de informações. Este movimento que hora vemos acelerar, como um progresso sem sentido, um mover-se niilista que visa romper todas as conexões entre o real e a existência, abstraindo a vida de seu valor. Movimento niilista que de um lado quer solapar todos os valores qualitativos, uma desvalorização de todos os valores, e de outro que quer traduzir tudo em códigos numéricos, controláveis por dispositivos cibernéticos.


Enfim, o ódio cresce como uma resposta entrópica a este fechamento, este ensimesmamento narcisista trágico. O inferno do igual, pois o humano não olha o outro, mas apenas o espelho e no espelho vê a cosmética do belo. Por certo que o espelho de Paulo ainda nos está disponível e quando nele olhamos, vemos a imagem do homem feio. Neste olhar angustiado podemos encontrar o caminho de volta a uma humanidade que se encontra em seus momentos mais desesperadores.

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