O hino do Rio Grande do Sul e a herança aristotélica
- Marcos Nicolini
- Jan 8, 2021
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Nunca é demais lembrar a controvérsia de Valladolid: de um lado a refutação do clérigo espanhol Bartolomeu de Las Casas, e a defesa feita pelo filósofo Juan Guinés Sepulveda, em torno da questão da escravidão de povos indígenas, ou melhor, de não europeus assujeitados pela

colonização. Las Casas defendeu a tese de que todos os homens são iguais perante Deus, portanto, a escravidão é algo aético e anti-cristão. Sepulveda tomando Aristóteles por referência defendeu que os homens não são iguais por natureza, portanto, alguns são escravos por natureza, leia-se, cuja razão inferior (como as mulheres e crianças) legitima a escravidão. A Espanha cristã se curvou a Deus, pelo menos neste momento.
Os gregos entendiam que um povo livre é um povo que se faz governar por suas próprias leis, que chamamos de autonomia: sujeita-se às leis que são determinadas por si mesmos. Enquanto que a escravidão é servir à lei de um outro povo. O grego não se permitia (até Roma mudar este nomos, esta norma, esta lei) ser escravo. Na Grécia, contudo, havia mais escravos do que livres, pois o homem superior podia assujeitar o que não tinha razão para determinar um nomos, uma lei a si mesmo. Os povos escravizáveis estavam mais para as bestas do que para os homens.
Claro, há movimentos entre os gregos, na filosofia grega que e opõe a este pensamento hegemônico, como o cosmopolitismo estóico. Mas não é o estoicismo grego que se faz ouvir em Valladolid e nem no hino do Rio Grande do Sul, antes, Aristóteles e os gregos, quando se canta: “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo.” Parece-me que os gaúchos que escreveram esta letra estavam pensando em grego e querendo dizer: aqueles que não forem fortes o suficiente para escreverem as leis que se submeterão, estes serão escravos de outros povos, no caso, Portugal.
Mas a questão é que entre os gregos e os gaúchos há a escravidão dos africanos no Brasil. Os gaúchos cantavam a liberdade política pela via da autonomia do Brasil frente a Portugal e deixaram de lembrar que outros povos estavam sob a violência de uma escravidão ainda mais perversa. Esqueceram de Las Casas enquanto pediam que Aristóteles lhes ajudassem a escrever o hino de seu estado.
No século XXI a igualdade de todos diante de Deus, defendida pela tradição cristã que reclamou Las Casas, volta a fazer sentido, ainda que eclipsada pelo secularismo.
A questão que me coloco é: será que a chamada Morte de Deus, que, como um buraco negro cósmico, leva consigo a morte do sujeito e anuncia o estraçalhamento do homem, não seria não apenas o prenúncio, como o encadeamento lógico e inexorável para uma revanche de Sepulveda e o triunfo das forças sobre a cordialidade? Esta minha pergunta exige que se faça outra: por que nos calamos por 500 anos e apenas agora retornamos a esta questão tão importante? Talvez o texto de Susan Buck-Morss, “Hegel e o Haiti” nos dê alguma pista.
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