O homem que queria ser deus: Übermensch
- Marcos Nicolini
- Jul 18, 2020
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Não basta esperar o Messias, há de se ter uma postura apropriada. A crença exige um decoro que lhe é próprio. É o decoro escatológico que se exige quando da esperança messiânica. Esperar e crer, mas de um modo tal que a parousia, a aproximação daquele que

é em sua unicidade e identidade, não seja um acontecimento inesperado, surpreso, um parto sem gravidez. A semente há de ter sido posta no solo para que dê seu fruto num tempo chamado kairós. O Messias é a certeza na concepção e espera, progresso inexorável de um tempo prenhe de sentido e que carrega em si o rebento cuja economia traz a marca do inevitável, ainda que invisível. O Messias não é ciência, mas certeza na esperança.
Embora a esperança seja uma antevisão das coisas, um olhar no horizonte vazio tendo como certeza que o céu azul desértico estará pleno de nuvens acinzentadas e repletas de chuva, a crença não está comprometida com a evidência própria e apropriada da theoria, da visão espetacular dos deuses. A evidência empírica é desalojada cedendo lugar à certeza esperada do olhar daquele que martirizado pelo tempo cronológico, o qual canta e dança num tempo que já se faz oportuno: o decoro do tempo escatológico. A testemunha messiânica, aquela que guarda e aguarda um tempo único, mantém seu olhar martirizado pela ausência de contraprovas, de evidências. Por sua vez, o tempo messiânico, kairológico, embora podendo ser metaforizado pela narrativa do plantio, é recortado pela não circularidade cíclica do natureza, antes, é marcado por uma linearidade do tempo irreprodutível, do tempo que avança, como uma flecha que corta o espaço, em contínuo até o acontecimento singular e único da parousia. O ser e o tempo únicos se encontram no acontecimento messiânico, cujo único olhar possível é o testemunhal do mártir.
Por sua vez, na economia do tempo cronológico da theoria, o olhar marca a distância do que contempla ao contemplado, como os deuses estão distantes do homem, olhando-o desde o Olimpo, e o homem que erguendo sua cabeça busca com o olhar o espetáculo da morada dos deuses. A theoria é marcada pela dia-logia do olhar. Como num teatro em que os espectadores aguardam e guardam o desenrolar do que se apresenta e se deixam marcar pelas imagens poderosas que são impressas em seu intelecto passivo (o lugar em que são gravadas as imagens-mundo no homem), a theoria é este olhar fundado na distância, na segregação, no dia-lógico. Mas desde a redenção do homem em sujeito, desde este tempo, este senhor das horas passou a gravar suas marcas no mundo e o sujeito quer assujeitar as coisas gravando-lhes o nome próprio. Contudo, a theoria, marcada ainda pela heteronomia de um modelo arquétipo, mantém-se como o olhar externo que sujeita o sujeito em uma visada que não é deste, mas daquela. A redenção do homem não se fez como sujeito, mas como assujeitado pelo dispositivo da theoria. Os deuses do tablado, no alto lugar, olham os homens marcando seus limites de pensamento teórico. O decoro do tempo teórico é o de sacrificar o olhar para fora das evidências em prol do assujeitamento a uma theoria que marca como poder heterônomo as possibilidades do pensamento, extirpando-lhe as possibilidades da crença e da espera.
O sujeito-theoria que assujeita o sujeito-theorizado, a partir do olhar sacrificial (o qual recorta e segrega), imprime neste sujeito o vir-a-ser de um tempo messiânico contraditório. O sacrifício é o corte que fende as partes, destinando-as a fins específicos: uma parte aos deuses que velam por sua parte e a parte dos homens que busca saciarem seus desejos. O sacrifício teórico dia-lógico que o saber requer é marcado pela distância da segregação que o corte produziu. A theoria guarda a lógica sacrificial e circular, fechando-se entre olhar dos deuses e olhar aos deuses, entre ser impresso e reproduzir a impressão, entre coisas dos deuses e coisas aos homens. Por outro lado, a theoria quer-se libertadora, transformadora, messiânica, esperançosa e progressista: revolucionária. Contradição própria da eleição de afinidades incomensuráveis.
Do tempo circular, cronológico, agravado pelo quantitativo das horas que marcam o repetir dos dias e das estações, se tenciona até o limite da linearidade de um tempo qualitativo do acontecimento messiânico. Do eterno retorno ao fluxo sequencial e irreversível de uma linearidade, impossibilidade própria dada pela secularização. O eterno retorto imbrica-se com o sacrifício trágico e a inelutabilidade da necessidade próprio da theoria. O tempo messiânico, kairológico, é linear, irreversível, da espera pelo acontecimento que grava no tempo cronológico a descontinuidade, rompendo com o sagrado e tornando a vida santa, isto é, um fluir constante e contínuo da espera e da crença transformadora.
Se por um lado a eleição de afinidades incomensuráveis produz o contrassenso de uma theoria progressista, isto é, um saber que conduz a uma redenção messiânica, uma parousia pela gnose, por outro lado a esperança messiânica se imiscui com a crença prometeica, em que é dado ao homem o poder de fazer o kairós ser revelado no cronos, a despeito da economia divina. Ou melhor, o divino é o humano.
A secularização produz o progresso, enquanto a profanização produz o homo deus. O materialismo e o espiritualismo se fundem numa synkrasis que torna o limitado (do saber humano) em totalização do conhecimento redentório pela gnose como num conto messiânico, enquanto o homem se funde com deus, podendo saber poder tudo e de todas as maneiras. Mas a jaula de aço (mantendo as referências weberianas) que o homo deus foi colocado é dado pela autonomia e liberdade aética da theoria, a qual, progressivamente, se desprende e renega o humano, que é posto como coisa apropriável e assujeitável diante do olhar do saber. O homem é colocado no microscópio por este saber autônomo.
O que vem além do homem não é um homem de espírito livre e sem amarras, mas uma theoria que prescinde do humano e o coloca numa jaula de aço em meio ao zoológico onde se guardam os animais que aguardam seu tempo experimental.
(considerações a partir da leitura de: MARRAMAO, Giacomo; Poder e Secularização: as categorias do tempo; São Paulo; Ed. UNESP: 1995)
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