Presidir e rezar em louvor ao que tem a espada nas mãos.
- Marcos Nicolini
- Apr 1, 2023
- 3 min read
Peguei-me lendo, mais uma vez, O Mal de Paul Ricoeur, esplêndido.
Depois de passar pela teodicédia a partir de Leibniz e Kant, chega a Hegel.
Este pensador que deu de mamar a Karl Marx e permitiu Nietzsche inúmeras glosas.

Ricoeur faz uma série de recortes do Capítulo VI da Fenomenologia do Espírito de Hegel, o qual tem como título “O mal e seu perdão.” Diz o filósofo francês que este capítulo “mostra o espírito dividido no interior de si mesmo entre a ‘convicção’, que anima os grandes homens de ação e se encarna em suas paixões (‘sem o que nada se faz de grande na história’!) e a ‘consciência julgante’, exemplificada pela ‘bela alma’ [...] que tem as mãos limpas, mas que não tem mãos. A consciência julgante denuncia a violência do homem de convicção, que resulta da particularidade, da contingência e do arbítrio de sua inteligência. Mas deve confessar sua própria finitude [...], sua particularidade dissimulada na sua pretensão à universalidade e, finalmente, a hipocrisia de uma defesa do ideal moral que se refugia numa única palavra.” (ao que acrescentamos: à sua palavra)
A moral, então, há de ser a que se instaura pelo homem violento, o da ação e é neste movimento que Hegel é um Nietzsche avant la lettre. A moral das ovelhas é substituída pela do lobo, melhor, pela matilha de macho e fêmea, com suas crias.
Este espírito dividido entre o homem de ação (violento) e as belas almas julgantes (os homens de letras) é reconciliado pelo perdão. O perdão é o reconhecimento da particularidade de cada um, da positividade da violência e a negatividade da bela alma. Nada mais expressivo que evocar São Paulo, apóstolo: “Tal como em São Paulo, a justificação nasce da destruição do juízo de condenação [...] ‘O Sim da reconciliação, no qual os dois eus desistem de deu ser-lá oposto, é o ser-lá do eu estendido à dualidade [...]’”. (pg. 40)
Vejamos que neste acordo entre a violência subsumida ao aparelhamento e a consciência cauterizada que se cala diante da compreensão do diferente, fica de lado o resto. Assim, pergunta Ricoeur: “Que futuro está reservado, com efeito, ao sofrimento das vítimas numa visão de mundo onde o pantragismo é sempre recuperado no panlogismo?” (pg. 41)
Diante desta questão de fundo, qual seja, ‘já não havendo moral a não ser da violência conciliada a uma consciência de belas almas de bocas cerradas, e cujo compromisso é o movimento do Estado, donde fica o resto?’, Ricoeur toma um segundo texto de Hegel, Filosofia da História e procura ali este resto faceado pela “astúcia da razão.”
Diante da “astúcia da razão”, “o futuro dos indivíduos é inteiramente subordinado ao destino do espírito de um povo e ao espírito do mundo. É mais precisamento no Estado moderno, ainda como estado nascente, que o fim último do espírito, a inteira atualização da liberdade, se deixa captar.” (pg. 41)
Neste movimento da astúcia da razão e do sentido inteligível da história é que se abandona a questão da felicidade e infelicidade. A partir daí que se pode dizer que a felicidade é uma ficção, útil para a bilheteria de cinema. Antes, da “história, diz-se, ‘não é lugar da felicidade’ [...] quanto mais o sistema prospera, mais as vítimas são marginalizadas. O êxito do sistema faz o seu fracasso. O sofrimento, através da voz da lamentação, é o que se exclui do sistema.” (pg. 42)
Que leitura espetacular do Brasil de 2023!
Como diria John Locke, os homens de letras, que aqui aproximei das “boas almas” de Hegel, os intelectuais e o clero (pastores e padres). Sempre me lembro daquela passagem no livro profético de Daniel, quando Nabucodonosor (ou o que valha), expediu uma lei que dizia que ao som da trombeta todos deveriam se ajoelhar diante da estatua do rei. É esta a chamada para o perdão à violência do violento que é conclamada pelas belas almas. Ao fim, o mal é apenas o dizer: “o mal é uma ficção num mundo insensível e indiferente, antes, o mal é não se dobrar ao poder.” Aqueles que antes vilipendiaram e denunciaram as ações demoníacas de um homem de ação, hoje lhe presta homenagem e o louva.
O Estado não é lugar de felicidade e do bem, mas de conciliação amoral pelo perdão à violência legitimada.
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