Pós-Verdade e o tiro no pé
- Marcos Nicolini
- Feb 17, 2017
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Ano passado o Dicionário Oxford elegeu o termo “Pós-Verdade” como o conceito anual. Todo ano, como um Oscar da Intelectualidade bretã, elegem uma palavra-conceito com o qual apontam um fato relevante.

Para quem, como eu, que comecei minhas andanças com a leitura de Baudrillard, Lyotard, Nietzsche, Heidegger, Derrida, Rorty, Foucault, Vattimo, Lipovetsky, etc., este espanto já vem tarde.
Na “Condição Pós-Moderna”, Lyotard vai nos dizer que a Verdade é uma produção que requer cada vez mais quantias maiores de recursos financeiros; Foucalt, por sua vez, em “Metafísica do Poder (em algum daqueles textos ali reunidos), dirá que somos obrigados pelo poder a produzir verdade; Baudrillard, a seu modo, declarará que giramos em falso, sem termos um centro, um lugar, e que este lugar, quando dissermos que há, é apenas um simulacro. Todos estes são leitores de “A Gaia Ciência”, quando Nietzsche coloca na boca do louca as palavras: “Deus morreu...nós matamos deus...agora não sabemos se subimos ou se descemos, se vamos para frente ou para trás...erguemos templos para adorar um deus morto como se fossemos ao cemitério.”
Nietzsche não estava falando de Deus, aquele que é, supostamente, atacado pelo secularismo. Nietzsche estava apontando, conforme a leitura que faz Heidegger, a metafísica ocidental. Esta se funda (“grund” em alemão, até onde eu sei) no dualismo e o dualismo vive como vive Lenin na praça vermelha. Nietzsche estava atacando o secularismo em si e a crença na Razão e sua suficiência, e aqueles monstros por ela produzido: Estado, Mercado, Liberdade, Igualdade, História, Progresso, Classe, Elite, etc. Um bom livro que trata destes devaneios modernos é o de Terry Eagleton: “A morte de Deus na cultura”.
Richard Rorty vai propor um nome adicional àquele que Heidegger propôs para a metafísica: onto-falo-poder, o ser que penetra e gera segundo a si mesmo, segundo sua potência de fazer-ser, diríamos. Às portas destes pensadores sempre habitou o relativismo, exigindo de cada um enfrentamento próprio. Diferente das avestruzes, que se negam a ver o problema, enfiando a cabeça na terra e deixando desprotegido o lugar por onde se dará mal; ou os caranguejos que pretendem andar para frente, sempre olhando para trás, estes diagnosticadores de uma tendência do tempo, enfrentaram a questão. A verdade, enquanto valor Moderno, Medieval e Antigo já havia se dissipado, já não mais é fundo que nos exige anuência a um discurso, ou narrativa.
As alternativas se multiplicam. Desde o culto aos antepassados, com o retorno do oprimido, os marxismos e os liberalismos clássicos, e suas vertentes religiosas na forma dos fundamentalismos (um bom livro sobre o tema é o de John Gray: “Al Qaeda e o que significa ser moderno), até as alternativas multiculturalistas, anarquistas e fuga da civilização. Todas estas vertentes reafirmam a pós-verdade e a exemplificam, cada qual à sua maneira.
A pós-verdade se impõe não por conta das inúmeras alternativas conflitantes que buscam um lugar ao sol. Não há problema algum em narrativas e discursos alternativos, conflitantes. O problema da pós-verdade está na crença antiga, territorial, de viés imperial, que articula verdade, universalismo e violência, nos termos: “sei que conheço a verdade, e como tal ela é válida em todo tempo, em qualquer lugar e a todos, portanto, aqueles que resistirem à verdade podem ser, legitimamente, eliminados.” Isto está na Inquisição espanhola, na Revolução Francesa e Russa, e está nos debates contemporâneos atuais.
Novamente, a questão não está no conflito de ideias, na oposição, no contraditório, na pluralidade e na diversidade. O problema está na fragmentação decorrente da metafísica da verdade, que aponta para a legítima da homogeneização universal. Em outras palavras, a questão está no encastelamento das verdades particulares que se querem universais e que, portanto, digladiam, estabelecem guerras linguísticas visando se impor a todos, desfazendo diferenças e multiplicidades. Sobre isto, Michel Foucaul nos oferece um discurso em forma de livro: “A ordem do discurso.”
Enfim, a pós-verdade não é decorrente da pluralidade e da diversidade de perspectivas e interpretações sobre o mundo, mas decorre da fragmentação que a metafísica, o último reduto dos deuses clássicos, impõe nesta guerra que tem o sentido da uniformização, da homogeneização, da igualdade radical, a partir de um particularismo. A pós-verdade não é um termo que atualiza o conflito entre liberdade e igualdade, contudo. A pós-verdade é o que ocorre quando na sociedade o triple não mais conta com a possibilidade da fraternidade.
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