Sobre uns poucos parágrafos de uma leitura de Bataille sobre Kafka
- Marcos Nicolini
- Feb 20, 2023
- 2 min read
Georges Bataille, A literatura e o mal: Kafka, página 144 (editora Autêntica, 2020)
Logo no início do texto sobre Kafka, Bataille nos fala sobre a proposta de um periódico comunista a partir da questão: devemos atear fogo nos escritos de Kafka? Uma provocação que parte de um pedido feito pelo próprio Kafka para que pusessem fogo em todos os seus escritos. Atear fogo em seus escritos seria como que para Moisés adentrar na terra prometida.
Conforme a Bíblia, Moisés apenas vislumbrou Canaã, mas não adentrou ali. Olhou-a ao longe e morreu.
Neste momento eu me lembrei de Heidegger e seus discípulos, para quem a vida autêntica é a vida para a morte. O que nos singulariza é viver a nossa própria morte. A única coisa autêntica de fato é que apenas eu posso morrer a minha morte. Paul Ricoeur vai propor que uma vida vale como negativa da morte até o último instante. Ricoeur leu e tomou referencia, certamente, em Moisés, em Davi, em Ezequias, em Jesus: somente eu posso viver minha vida e devo fazê-lo como o amor singular que ela reclama. O humano não é um ser para a morte, mas para a vida e o último instante será de lamento e gratidão, de suspirar e solicitar mais vida, de não se entregar: "...se possível passa de mim este cálice...", pois Deus colocou no coração do humano a eternidade.
A vida do cristão é um suspiro por uma outra vida que não se realizou. Assim, Moisés suspirou por Canaã: podia ser um outro mundo... Davi suspirou pelo Templo que não poderia edificar: podia ser um outro mundo... Ezequias suspirou por mais um tempo para colocar a casa em ordem: podia ser um outro mundo... Jesus suspirou por um mundo fraterno: podia ser um outro mundo sem sacrifícios...
A vida humana não porta em si as condições de possibilidade de realizar no tempo de sua existência o projeto de um outro mundo. Este é o recado que o cristianismo nos oferece. Mais do que isto, o tempo, não importa quão longo seja, não realiza as mudanças que o mundo precisa. Não há no mundo (na imanência material do tempo) os recursos para um mundo melhor.
Assim, Bataille fala de Kafka: este gênio da literatura, ao apontar para Moisés, está longe de ser um comunista! Penso eu que estaria longe de ser um cristão, aparentemente. Não há em Kafka um Telos, um sentido além de "atear fogo" no existente e na esperança.
Daí me veio um desenho possível para pensarmos estas coisas: a mudança do mundo e a crença num sentido. Pensei em quatro possibilidades que nos são postas. Pode haver outras, mas pensei apenas nestas que desenhei.

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