Talvez um Gramsci moderno sem vergonha
- Marcos Nicolini
- Apr 19, 2016
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Há uma narrativa bíblica em que os israelitas caminham pelo deserto, saídos do Egito em progressão a Canaã, contudo, neste percurso são atacados por serpentes. Então, YHWH diz a Moisés que levante uma serpente de bronze no meio do acampamento, assim, aqueles

que foram envenenados, poderiam olhar para aquele ícone e seriam curados. Há algumas coisas intrigantes nesta narrativa, uma delas é que YHWH diz aquilo que contradiz os dez mandamentos: não farás para ti imagem e esculturas. Não obstante este intrigante episódio, nosso propósito aqui é outro.
Retornando nossa linha de raciocínio, lembramos que nos evangelhos, a narrativa do êxodo judeu é retomada por Jesus. Diz-nos que assim como nos dias de Moisés a serpente fora erguida no deserto, também ele seria levantado, fazendo alusão à sua morte de cruz. Seu sacrifício representaria a esperança da vida.
Esta imagem bivalente daquilo que mata e cura está presente, de maneira própria, na linguagem grega, mas outro modo. Os gregos contavam com a palavra pharmakon, que traduzimos melhor por drogas, este signo bivalente. Hora significava o remédio que cura, hora o veneno que mata, dependendo da habilidade do médico. Não por acaso o símbolo das ciências médicas tem na serpente um ícone sempre presente: a serpente e o pharmakon.
O pharmakon, sempre imbricado com a serpente, é um elemento sugestivo de nossa modernidade. O pharmakon, como a serpente de bronze, é um artifício, algo que se dá na ação humana sobre um recurso, uma técnica. A técnica é esta capacidade humana de ir além do dado bruto, apontando para o agir em prol de um controle com utilidade ao humano. A técnica opera a partir da ciência, do saber que permite a produção de dispositivos que visam o bruto em útil.
Um exemplo, talvez, favoreça-nos. Um engenheiro ao se deparar com uma queda d’água, não se reterá em observar a beleza daquele evento, mas pensará em quanta energia poderá ser produzida por aquele desnível. A partir dos conhecimentos científicos, que buscam controlar os fenômenos e projetar recursos, o engenheiro pensará em utilizar aquele recurso disponível. A ciência e a técnica não se retém apenas na observação e descrição de fenômenos, mas se projetam para a obtenção dos recursos ali disponíveis: controle e projeção.
Pharmakon: ir além do veneno da serpente e perceber naquele composto bioquímico um recurso para matar e dar vida. O homem moderno não é passivo diante daquilo que pode lhe causar danos, mas objetiva-o a fim de, onde vem o mal e o terror, produzir coisas que lhes são úteis. Em outras palavras, deixamos de ser contemplativos como os antigos e os medievais e nos dispusemos a ação. O moderno não se detém diante daquilo que se interessa apenas para descrever seu funcionamento, mas, e sobretudo, para controlar e dispor para uso em seu benefício.
É nesta passagem da contemplação (o olhar descritivo das coisas) para a produção técnico-científica dos pharmakons que me referencio para ler a receita de Gramsci segundo Calligaris (publicado em 14/04/16: “Somos os otários de todos”). Segundo este articulista da Folha, “nos cadernos que ele (Gramsci) preencheu no fundo das prisões fascistas, ele registrava suas tentativas de entender como funciona o mundo. A ‘hegemonia cultural’ não é uma estratégia que Gramsci proporia ao partido comunista; ao contrário, trata-se de um conceito para tentar entender como em cada momento da história, a classe dominante produz e impõe à população um conjunto de ideias e crenças. Entender como funciona a hegemonia cultural talvez nos permitisse nos livrar (um pouco) dela, ou seja, descartar a visão do mundo sugerida pelos preconceitos mais triviais das ‘elites’.”
Destacamos, inicialmente, que Gramsci tentava entender o mundo, como as elites culturais dominavam a população produzindo e impondo ideias e crenças. Este conhecimento talvez permitisse nos livrar, descartando a visão de mundo dos dominantes. A fala de Cotardo Calligaris traduz uma passividade impossível de ser encontrada no pensamento moderno, ainda mais de uma tributário ao marxismo, como Gramsci. Alguém que acredita na ideia de que não devemos apenas conhecer o mundo, mas transformá-lo. Gramsci, mesmo antes de ser alguém que buscava atualizar o marxismo, era um moderno, e como tal, não tomava o objeto de sua análise de maneira passiva, dizendo apenas: “assim que ele é.” Mas, diz: “este pharmakon que nos mata, oferece-nos a vida.” Conhecer os procedimentos, as produções e as imposições de ideias com as quais não comungamos, antes, nos opomos, permite-nos, talvez, proceder, produzir e impor aquelas que acreditamos. Em outros termos, Gramsci não questiona a hegemonia cultural, mas a cultura que se tornou hegemônica, e isto faz toda diferença. Aqui não se trata de um talvez passivo, de um olhar que contempla o paraíso, enquanto preso, retido no inferno fascista, mas numa disposição prática, cujo talvez se dê na percepção do acontecimento que, captado, permite a utilização do veneno em remédio. Um talvez que sinaliza uma estratégia, no modo vulgar, uma receita.
Por fim, ser moderno é ir além desta propensão técnico-científica, e ser um portador de visão de mundo. De maneiras diversas, tomando esta ou aquela referência, produzimos nossa visão de mundo. O dilema do homem moderno é viver num mundo plural, mas com crenças particularistas com pretensão universalista. Isto é, crendo que suas crenças pessoais devam formar a cultura hegemonizada. Não encontramos, ainda, um modo de superar as hegemonizações culturais e reconhecer uma cultura que privilegie o plural. Enquanto isto, nossos debates, talvez, não se voltem ao encontro do antídoto para o veneno que circula entre nós: das imposições particulares a todos.
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